Todos os dias os espero no topo do parque. Tenho 49 anos. Estou velha. Não
é por fora que o estou. É dentro. Velha. Ainda os espero. Eles vêm. Vêm velhos.
Como eu. Dentro. Velhos por fora. Quase incapazes. Coxeiam entre arbustos.
Outros novos. Alguns, quase crianças, podiam ser meus filhos. No início
arranjava-me muito bem, como se fosse ao encontro do meu amor. Já não me
esforço. Tenho o cabelo pintado de loiro. As raízes pretas indisfarçáveis. Se o
deixasse da cor natural não seria branco, antes castanho muito escuro. Velha.
Dentro. Não me importo de ter o cabelo mal pintado. Não me importo, é tudo.
Quando comecei fantasiava o homem da minha vida ansioso de mim, dos meus beijos,
no topo do parque, para passearmos de mãos dadas, ladeira abaixo. Corríamos
felizes por essa, para em seguida subirmos pelo lado oposto. Atravessávamos os buxos
simétricos, jogando um com o outro, esquivando-nos divertidos. Então, ele
deixar-me-ia na paragem do autocarro e eu apanharia a carreira de volta a casa.
Ainda cheirosa, cuidada, enlevada pelo nosso bem-querer. Ora isto era mesmo,
mesmo no princípio. Antes da primeira vez que entrei num carro anónimo; antes
do primeiro odor agoniante; do primeiro acto mecânico; muito antes da primeira
violência que sofri. Não havia experimentado o desrespeito, o desprezo alheio, nem
as frustrações feitas manipulação. Desleixei-me. De nada me serve fingir.
Preciso do dinheiro. Poderia arranjá-lo de outras formas? Sim. Por que estou
aqui? Não me lembro. Sei que não há tempo para namoros. Desiludi-me. Quis ser
resgatada? Muitas vezes. Não aconteceu. Talvez não quisesse o suficiente.
Acredito que aconteça a outras. Será possível, certamente. Comigo não. Perdi-me
e ao brio, também. Fui bonita. Fui bonita. Fui bonita. Repito-o e nada diz de
mim. Fui. Hoje vejo-me feia e velha. Deixei-me engordar e, se me apetecer,
venho de chinelos de praia para o topo do parque. Visto-me muitas vezes, talvez
todos os dias, como quem vai à praça, de aparência descuidada, num saltinho,
ainda sem o banho tomado, para ganhar tempo ao dia que é curto. Para eles,
tanto faz. Procuram-me mas a busca não é por mim. Mulher. Pessoa. Sou apenas um
corpo qualquer. Um bem móvel. Um serviço. Se ausente, não esperam. Descem um
pouco e encontram mais novas, bonitas, de outro género. O cheiro já não lhes
sinto, nem me enojam os seus corpos demasiadas vezes imundos. Desleixados
também eles. Não reparo que não tentem a conversa. Aqui trabalha-se. Tenho
tempo para sonhar, longe. Onde moro e não suspeitam o que faço. Sabem de outra
que também sou. A que vai, de facto, à praça. A que cuida dos filhos. Sozinha.
A que sobrevive a custo. Um dia alguém me há-de ver, me há-de procurar e
dir-me-á: “Vá, é tempo de deixares isto. Descansa.” Sonho. Alguém me mostre com
carícias e ternura que não sou apenas a profissão. Não. Sou uma boa mulher. Corajosa.
As mulheres que ganham a vida de outras formas passam por mim. Encaro-as. Elas
fazem por não me ver. Disfarço o inegável. Ando uns passinhos para a frente, ou
para trás, consoante a direcção de onde me aparecem. Como se houvesse outro rumo
a seguir. Passam por mim aceleradas. Algumas pena. Outras desprezo. Dissimulam
não perceber e passam rente, como se eu fosse uma aragem. Ignoram-me. Talvez os
seus homens também se venham aqui. E eu mais velha, feia. Nada a dizer-lhes,
mas disponível. Faço o que muitas recusam. Condenam-me porque posso ser a
perdição. Nem todos querem usar preservativo. Faço-lhes a vontade. Receio? Tenho-o,
mas o dinheiro faz falta. Se me nego eles descem e encontram quem não se
importe com a saúde, ou com as vidas em que tocam. Só existo na minha morada.
Aqui, neste bocado de passeio, onde se ouvem galos, não. Não existo para eles,
para mim, antes não existisse para elas. Encostada ao alumínio do poste, sou uma
mistura de expectativas. Minhas e dos que param para eu trabalhar.
Andreia Azevedo Moreira
Criado em Abril de 2009, saiu pela primeira vez à Rua em Abril de 2013.
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