quarta-feira, 22 de maio de 2013

«Não era cego, mas tinha um cão guia.»


Era um tipo normal. Mediano em tudo. Sabia-o e a sua auto-estima não lucrava com a lucidez. Não é que se depreciasse. Gostava de si, não obstante a banalidade. Ela também gostava dele. Passava todas as manhãs à frente da sua casa, antes de ir correr para a marginal e por vezes sorria-lhe, depois de dar uma festa no cão – o Pescas. Luís dera-lhe esse nome porque o resgatara na margem de um rio, num dia de pescaria. O cachorro estava prestes a afogar-se, quando ele o salvou do destino que alguém lhe traçara. Sofia há muito que se encantara pela figura daquele homem solitário, mas ainda gostava mais do cão. O único, entre os dois, que reparara nela. De cada vez que se encontravam o bicho ficava frenético. Abanava-se enlouquecido de alegria e corria em círculos à volta de Sofia. Só não se empoleirava na transeunte porque as três semanas de aulas de etiqueta canina o haviam treinado a coibir-se desses impulsos. Luís alheio à felicidade do seu companheiro, resmungava um bom dia sem se dignar encará-la. Ela não ligava. As manifestações amorosas do Pescas eram o bastante. Pode dizer-se, inclusive, que começavam a sobrepor-se à vontade que havia tido um dia de conversar, um pouco mais, com Luís. Cansava-a aquela completa falta de interesse. “Quem não dá uma oportunidade, também não a merece.” Consolava-se. Sofia sabia o nome do cão e desconhecia o nome do taciturno rapaz. Os dias sucediam-se iguais, para um e para o outro. Talvez Sofia fosse menos amargurada, se é que se podem medir as amarguras das pessoas. Luís não se envolvia. Sonhava com uma colega. Pessoa que não lhe retribuía o sentimento e que o usava para se divertir. Ele permitia-lho. Enredado numa paixão avassaladora. Sofia vivia simples. Não era dada a grandes reflexões. Gostava de correr na marginal, do Pescas, do pão quente pela manhã, que comia com doce de tomate feito pela avó de noventa anos e gostava muito de respirar fundo, enquanto olhava o céu e esticava os braços, como quem quer abraçar as nuvens. Tinha algumas amizades, gostava do seu trabalho, sentia-se bem consigo. Luís acreditava que a única posse era aquele ardor por Mariana. Que fazer da vida, quando a paixão se consumisse? Sentia-se muito sozinho. Era o cão que o impedia de se matar. A vida a escrever-se escorreita. Acaso? Não existe. À noite, em casa dançava, amiúde, a dança da solidão. Masturbava-se, enquanto pensava na outra. De dia, na rua, ignorava Sofia que se entretinha estudando-lhe o modo de ser. Começou pelo visível: olhos tristes, expressivos; boca contida; sorriso tímido com alguma notícia no jornal, que compra todos os dias; cabelo revolto, encaracolando junto ao pescoço; ombros caídos; mãos de unhas roídas; roupa escura. Andar desajeitado. Voz apagada. Apelos meigos ao cão. Nervoso com os atropelos do Pescas. Ar de abandono. Lentidão nos gestos. Desistência tácita. Dava-lhe vontade de o consolar. De o amar, até. Queria dizer-lhe que ele estava enganado com a vida, mas não sabia como. Pois se tão pouco a olhara algum dia. O ritual do cão repetia-se. A cegueira de Luís subsistia. Sofia ria-se. Perdoava a indelicadeza ao rapaz.

(Criado em Outubro de 2009. Saiu, pela primeira vez para a Rua em 26 de Maio de 2013.)

OBRIGADA POR ME LERES.

Andreia Azevedo Moreira

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OBRIGADA POR ME LERES.