Vagueio na memória pela casa que, na infância, também foi minha. A
quietude actual agride-me. A penumbra em que se buscava o fresco nos dias mais
quentes é, hoje, a afirmação do que não torna. Abate-se sobre mim a saudade
desses instantes. Desanimo nesta carência das certezas de vocês em mim. De quem
era, aí convosco. Em cada Verão feito vosso. Ao cheiro da árvore do jardim, intenso
em noites abafadas e que nos chegava às narinas enquanto apreciávamos a brisa
no alpendre, recordo-o enternecido numa semelhante, quando regresso pela
estação ferroviária. Arrancaram-na há muitos anos. O odor era enjoativo. Sinto
falta dos serões adocicados, da árvore e de todos nós nos respectivos lugares.
Não nos deviam mover dos sítios para que fomos feitos. Fomo-lo uns para os
outros. Apesar das falhas. Graças às virtudes. Às escadas em que nos sentávamos
rindo, talvez não volte. Se lá me sentasse aguardaria, pelo vosso regresso.
Incansável, dorido, saudoso do que são cá dentro e não podem ser, fora. A todos
quantos crescemos nesses metros quadrados magoa a casa tão vazia. A saudade a
sovar-nos e nós a fingirmos que não fere a pancada. Há que continuar. A vida
empurra. Continuamos, pois, mas a espreitar para trás. Sabemos que não se apagam
as pessoas nossas, mesmo quando o presente se reduz a uma centelha da força de
outrora, num olhar apagado e a uma ausência irremediável. Mudamos. Existimos,
ainda. Porém, não são destruídas as fundações. Sólidas? Perigosas? Pouco
importa. São história. A nossa. São memória. Amor. Vagueio na obscuridade e no
sossego definitivos. Atento, escuto gargalhadas, ralhetes, gritos, manias,
conversas, mágoas, perdões que não se pediram. Ouço-nos reunidos. Instantâneos
do meu tempo de vida. Vejo-nos. Foi ontem. Não foi? Talvez tenham decorrido 24
horas, apenas. A gata listada, macia, perseverante num quotidiano pretérito
agora sem gente, risos, ou choros. A nossa casa desabitada e ela enchendo
teimosa as escadas do alpendre, o corredor empedrado que dá para a garagem,
deitando-se no relvado, lá atrás. Impassível, preenche-nos o abismo, não nos
consentindo esquecer-vos.
(Pouco tempo depois do
aniversário a gata morreu.)
Andreia Azevedo Moreira
OBRIGADA POR ME LERES
16º Texto - Saiu, pela primeira vez, à Rua em 25-06-2013
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