Rasgos de lucidez e Boris devastado. Olha para Anna, a seu
lado, no jardim da residência francesa e apetece-lhe chorar. Todo desconsolo.
Não pode fazê-lo. Por ela que há muito se ausentou, há que manter a farsa. Anna
cujo corpo vagueia perto, roçando-lhe a roupa e a alma, parece nunca esquecer o
amor que os enleou na primeira troca muda de olhares. Ignora a realidade. Há
anos que ela vive apenas a “outra vida”. Boris sabe que a demência haverá de o
levar também. Mantêm-se unidos pela memória de um amor teimoso, insensível à
passagem do tempo, ou ao avanço da loucura. Não quer continuar sem ela. Perdeu
a graça. É cada vez mais difícil distinguir entre o que lhe acontece de facto e
o que é fruto da imaginação de ambos.
Recorda com doçura magoada a sua vida, com Anna, outrora
normal. Não Anna, porra. Isabel. Anna já é dos tempos de alienação. Anna, Boris
e todas as outras personagens que forjaram para mascararem a rotina. Começara
por brincadeira. Casaram jovens e fartos que estavam da existência morna que se
instalara, decidiram reinventar-se. Juntos. Cada um seguir o seu caminho não
era hipótese. Depressa perceberam que as brincadeiras e os fetiches não eram
suficientes. Os chicotes e as flagelações não os excitavam por aí além. As
trocas de nome massacravam-nos de ciúme. As viagens revelavam-se insuficientes.
Desvanecera-se a comoção nos terminais dos aeroportos. Queriam mais. Outras
vidas. Ao pormenor. Essas pessoas transpuseram as fronteiras das suas mentes e
começaram a povoar-lhes os dias. Davam-se ao trabalho de organizarem jantares
para convidados fictícios. A mesa era posta a rigor, as melhores garrafas de
vinho respiravam em cima da mesa para serem saboreadas. Música selecionada
tocava na aparelhagem. Dançavam a dança da insanidade. Enlouqueceram António e
Isabel. Boris e Anna. Pablo e Cuca.
Os amigos afastaram-se. Encaravam-nos incrédulos. Os mais
leais tentaram, durante algum tempo, fazê-los ver o que lhes acontecia. De nada
serviu. Alegavam legitimidade para fazerem o que entendessem. Saíram, pois, de
mansinho daquelas duas vidas incompreensíveis que seguiam cada vez mais sós.
Viveram aventuras envolvendo envelopes pardos e soros da verdade. Frequentaram
sessões de psicoterapia, que ao invés de os fazer regressar ainda lhes
estimularam mais o devaneio. Andaram por Paris e por Lisboa, em carros de alta
cilindrada. Foram pai e filha, amantes, assassinos, espiões armados até aos
dentes. Foram inimigos, amigos, duas mulheres e dois homens, partilharam e
fugiram da realidade "dos outros". Cúmplices.
No dia em que tudo começara rodava no prato do gira-discos o
vinil com Clair de Lune de Debussy. Melodia com que Oddville se lhes apresentou. (Homem que
mais ninguém conheceu.) Era a partitura que António mais gostava de
interpretar, quando tocava piano. Música maldita que de quando em vez o obriga,
ainda, a regressar à realidade para onde já não é possível resgatar Isabel.
Responsável, também, pela sua desgraça. Pela sua morte. Pela morte e desgraça
de ambos.
Olha para o líquido onde diluiu a dosagem fatal com que planeou o seu suicídio e o homicídio dela. Contempla desolado a sua bela mulher, alheia ao plano, ingénua na sua ausência irremediável. Agita a garrafa acima da cabeça diante dos olhos. Pensa:
É chegado o fim?
(Criado em Fevereiro de 2009. Revisto em Julho de
2013.)
andreia azevedo moreira
OBRIGADA POR ME LERES!
andreia azevedo moreira
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