quinta-feira, 4 de julho de 2013

«Anna e Boris»


Rasgos de lucidez e Boris devastado. Olha para Anna, a seu lado, no jardim da residência francesa e apetece-lhe chorar. Todo desconsolo. Não pode fazê-lo. Por ela que há muito se ausentou, há que manter a farsa. Anna cujo corpo vagueia perto, roçando-lhe a roupa e a alma, parece nunca esquecer o amor que os enleou na primeira troca muda de olhares. Ignora a realidade. Há anos que ela vive apenas a “outra vida”. Boris sabe que a demência haverá de o levar também. Mantêm-se unidos pela memória de um amor teimoso, insensível à passagem do tempo, ou ao avanço da loucura. Não quer continuar sem ela. Perdeu a graça. É cada vez mais difícil distinguir entre o que lhe acontece de facto e o que é fruto da imaginação de ambos.  

Recorda com doçura magoada a sua vida, com Anna, outrora normal. Não Anna, porra. Isabel. Anna já é dos tempos de alienação. Anna, Boris e todas as outras personagens que forjaram para mascararem a rotina. Começara por brincadeira. Casaram jovens e fartos que estavam da existência morna que se instalara, decidiram reinventar-se. Juntos. Cada um seguir o seu caminho não era hipótese. Depressa perceberam que as brincadeiras e os fetiches não eram suficientes. Os chicotes e as flagelações não os excitavam por aí além. As trocas de nome massacravam-nos de ciúme. As viagens revelavam-se insuficientes. Desvanecera-se a comoção nos terminais dos aeroportos. Queriam mais. Outras vidas. Ao pormenor. Essas pessoas transpuseram as fronteiras das suas mentes e começaram a povoar-lhes os dias. Davam-se ao trabalho de organizarem jantares para convidados fictícios. A mesa era posta a rigor, as melhores garrafas de vinho respiravam em cima da mesa para serem saboreadas. Música selecionada tocava na aparelhagem. Dançavam a dança da insanidade. Enlouqueceram António e Isabel. Boris e Anna. Pablo e Cuca.

Os amigos afastaram-se. Encaravam-nos incrédulos. Os mais leais tentaram, durante algum tempo, fazê-los ver o que lhes acontecia. De nada serviu. Alegavam legitimidade para fazerem o que entendessem. Saíram, pois, de mansinho daquelas duas vidas incompreensíveis que seguiam cada vez mais sós. Viveram aventuras envolvendo envelopes pardos e soros da verdade. Frequentaram sessões de psicoterapia, que ao invés de os fazer regressar ainda lhes estimularam mais o devaneio. Andaram por Paris e por Lisboa, em carros de alta cilindrada. Foram pai e filha, amantes, assassinos, espiões armados até aos dentes. Foram inimigos, amigos, duas mulheres e dois homens, partilharam e fugiram da realidade "dos outros". Cúmplices. 

No dia em que tudo começara rodava no prato do gira-discos o vinil com Clair de Lune de Debussy. Melodia com que Oddville se lhes apresentou. (Homem que mais ninguém conheceu.) Era a partitura que António mais gostava de interpretar, quando tocava piano. Música maldita que de quando em vez o obriga, ainda, a regressar à realidade para onde já não é possível resgatar Isabel. Responsável, também, pela sua desgraça. Pela sua morte. Pela morte e desgraça de ambos.

Olha para o líquido onde diluiu a dosagem fatal com que planeou o seu suicídio e o homicídio dela. Contempla desolado a sua bela mulher, alheia ao plano, ingénua na sua ausência irremediável. Agita a garrafa acima da cabeça diante dos olhos. Pensa:

É chegado o fim?


(Criado em Fevereiro de 2009. Revisto em Julho de 2013.)

andreia azevedo moreira

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