Lisboa, 23 de Novembro de 1950
Querida
mãe, não me levarás a peito se te disser que preferiria ter nascido
homem. É violenta a vida para todos. Para uma mulher na sociedade deste ano em que te escrevo – O
da tua morte. – mais do que agressão, é devastadoramente opressora. O meu ânimo
não se compadece das regras que inventaram para nós. Não me sinto o que
pretendem que seja. Repara como a raiva se anda a alimentar do meu peito. No
outro dia a torneira gotejava. Comecei por ignorar. Eis que aquele
contínuo pingar, aquele murmúrio repetitivo me fez pensar no que os outros
esperam de mim:
- Comporta-te. – Dizia-me a
água.
- És uma senhora. – Sussurrava
o ruído.
Lembrei-me
de ti quando me dizias com os olhos: «Que
desilusão minha filha. Para onde te foi a doçura?»
Foi
demais. Dei cinco murros na parede e um pontapé na torneira. Calou-se,
sabes? Pumba. Bastou querer. Que culpa tenho se o meu pensamento não se
adequa? Antes a morte, por me alistar num exército. A guerra com os combates, o
sangue, as mutilações. Que é isto que me fazem à alma, senão a vontade de amputá-la?
Sofrias. Vi as lágrimas que derramaste por eu ser diferente. Às que não observei
provei-as no sal que te temperava a face, quando te beijava. Perdoa-me se me
não posso desculpar pela minha natureza. Toda a vida me apressei subindo as
escadas que me elevariam ao teu coração. Perdia o
fôlego. Quanto mais corria, menos te alcançava. Sempre soube que, mesmo que lá
chegasse um dia, não teria o que te oferecer, além deste imenso amor.
(E tu sem o aceitares.)
Anna
Maria
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OBRIGADA POR ME LERES.