quarta-feira, 31 de julho de 2013

«Carta»



Lisboa, 23 de Novembro de 1950

Querida mãe, não me levarás a peito se te disser que preferiria ter nascido homem. É violenta a vida para todos. Para uma mulher  na sociedade deste ano em que te escrevo – O da tua morte. – mais do que agressão, é devastadoramente opressora. O meu ânimo não se compadece das regras que inventaram para nós. Não me sinto o que pretendem que seja. Repara como a raiva se anda a alimentar do meu peito. No outro dia a torneira gotejava. Comecei por ignorar. Eis que aquele contínuo pingar, aquele murmúrio repetitivo me fez pensar no que os outros esperam de mim:

- Comporta-te. – Dizia-me a água.

- És uma senhora. – Sussurrava o ruído.

Lembrei-me de ti quando me dizias com os olhos: «Que desilusão minha filha. Para onde te foi a doçura?»

Foi demais. Dei cinco murros na parede e um pontapé na torneira. Calou-se, sabes? Pumba. Bastou querer. Que culpa tenho se o meu pensamento não se adequa? Antes a morte, por me alistar num exército. A guerra com os combates, o sangue, as mutilações. Que é isto que me fazem à alma, senão a vontade de amputá-la? Sofrias. Vi as lágrimas que derramaste por eu ser diferente. Às que não observei provei-as no sal que te temperava a face, quando te beijava. Perdoa-me se me não posso desculpar pela minha natureza. Toda a vida me apressei subindo as escadas que me elevariam ao teu coração. Perdia o fôlego. Quanto mais corria, menos te alcançava. Sempre soube que, mesmo que lá chegasse um dia, não teria o que te oferecer, além deste imenso amor.

(E tu sem o aceitares.)


Anna Maria

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