terça-feira, 23 de julho de 2013

"I Want You"


(National Geographic – Começou por ser uma história sobre leões.)

Observo-te do outro lado da Rua. Mantemo-nos à distância, uns instantes. Não desviamos os olhos presos. Serei capaz de atravessar? Sou. Estou a meio metro de ti, na dúvida se cumprimento, ou passo como se não te houvesse encontrado. Gostas de dificultar e não avanças, nem recuas. Ficamos a medir-nos como duas janelas por abrir. Por que me olhas tão sério. Queres que me vá. Há muito prescindiste das respostas. Ainda não me cansei de te questionar. Colocaram cimento nas nossas articulações. Impede-nos de prosseguir ou de qualquer tentativa de fuga. Minto-te. «Só um abraço. Depois vou.» Não dás sinal de o autorizar e já me agarrei a ti com força. Colo-me ao teu corpo. Quero saber se os nossos perfis encaixam. Interessa-me, por exemplo, a compatibilidade dos nossos pescoços. Vou atrás da tua orelha. Perco a vergonha, desenho-a com a língua. Desço-te até à clavícula. Acumulo os cheiros teus para te mapear na memória. Permaneces sem dizer uma palavra. Escondo-me no teu peito. Recuarei. Vou fingir que não te vi e que não te tentei seduzir. Nego tudo, humilhada pela tua indiferença. Desisto. Estava preparada para a derrota. Coloco o pé para o passo atrás. Correrei muito depressa na direcção oposta. Talvez nada disto aconteça. Eis que me agarras e reténs sem te rires para mim que me perco na ausência de sorrisos. Estás a magoar-me. Queres que fique. É isso. As nódoas negras que me desenhas nos braços são tu a quereres-me. Quase tanto desejo quanto o meu. O silêncio a tua forma de me despir. Mordes-me porque não me sabes beijar. Desaprendemos a ternura na espera. Demasiado longa para arranjarmos tempo, agora, para nos escondermos. A Rua ficou deserta, por respeito ao nosso inadiável. Bebo o meu sangue e o teu. (Também te mordo.) Esqueço o medo de me achar nua à tua frente. Empurro-te, bruta. Bates com a cabeça no prédio onde nos fomos apoiar. Não sentes dor. Dizes:

«Não sinto dor.» (Estás aqui.)

Agrido-te implacável, com a minha vontade. Não te defendes.

«És a seguir.»

Toco-te para te revelar. Cega é com as mãos que te vejo. Quero conhecer-te inteiro. Puxo-te. Avanço por ti para te matar em mim. Não é saudável viver-se com uma pulsão destas a comer-nos a alma. Tenho os tímpanos a zunir porque me chegaste ao coração pelos ouvidos. O prazer comanda. Passivo ao meu ataque, aguardas que mate a sede. Impossível. Lambo-te o sal da pele. Tenho o sexo quente de tanto sangue. Pulsa ao ritmo do músculo na expectativa de te acolher. Duro. Viras-me.

«Temos tempo.»

Rosnas no meu cachaço. Tens duas mãos para pousar onde preciso. Uma boca da qual espero o indizível. Narinas que me respiram. Apertas-me contra ti. Sinto-te. Dentro.

«Não chega.»

Apoio os braços na parede que me sorri, cúmplice. Empurro-a ritmada. Uma e outra vez. Estás onde te quero.

«Espera.»

Não sou paciente. Precipito-me para a construção e para ti numa vertigem. És desnorte e, ao contrário de mim, tolerante. Aguardas a vez de me assassinar em ti.

«Depois de uma paixão destas, só a morte.»

Voltas-me. Sou leve nas tuas mãos. Manipulas-me bem, apesar da obesidade que não te incomoda. A tua aceitação do meu corpo comove. A coreografia da nossa dança é inconstante, na pista escorregadia. Somos suor. Os meus pés deixaram o chão muito antes do teu colo. Quebrar-me-ei na queda. (Não tenho hipótese.) Não é nisso que penso, quando constato que continuas calado. És tão silencioso. Há em ti segredos ou só vazio? Quero dizer-te coisas indecentes ao ouvido. Digo-tas simulando que o não faço. Creio que não mas queres ouvir, porque me empurraste de novo e esfregas-me o rosto na superfície irregular, enquanto me seguras pelo cabelo. Não sei de ti. Só de mim. Enfraquecida, letárgica, depois da corrente que me atravessou. Afastas-me para o lado. Nojo?

«Ele do outro lado da Rua. Viu-me?»

«Ela do outro lado da Rua. Não me apeteceu.»

Encontraram-na morta um século depois. O cadáver tinha epiderme, músculos, unhas, cabelo. A face reconhecível, porém, do lado esquerdo mutilada. Despida sorria. Na Rua testemunha nenhuma do acontecido. A autópsia declararia órgãos. Um milagre. Foi trabalhoso removerem-lhe o coração para se aferir as causas da morte.

(Estava amarrado.)

Andreia Azevedo Moreira

Criado de 9 a 13 de Julho de 2013. Saiu para a Rua, pela primeira vez, em 15 de Julho de 2013.

OBRIGADA POR ME LERES.


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