sábado, 28 de setembro de 2013

«NÃO SOU A INÊS PEDROSA.»


Faço o quê, agora? Alguém me diz? Sou uma optimista, espalho sorrisos, alegria e o que é que a vida me faz? Põe-me estas bestas no caminho. De que me serviram os últimos meses nas aulas de yoga e aprender a vibrar em frequências de energia positiva? Estou metida neste filme e o Universo nickles para os meus esforços em me transformar numa pessoa boa. São quatro. Três deles saíram de um carro preto, muito velho, para me agarrar. O quarto ficou ao volante. Foi o que vi antes de me amarrarem as mãos com uma fita-cola parda resistente e me vendarem. Encheram-me a boca com um lenço que me ataram à nuca e me dificulta a respiração. Fizeram bem, ou já teriam ouvido um, ou outro palavrão. Que merda, pá! Dei um salto à livraria, da rua onde moro, para comprar um livro que me tinham emprestado há uns anos e do qual me lembrei há bocado. Fiquei com aquela vontade inadiável de o reler. Ironia das ironias pela conversa percebi que me raptaram pensando que sou a Inês Pedrosa. Será possível? Mas por que raio haveria a autora de se dirigir a uma livraria, no Rato, às oito da noite de um dia de semana, para comprar um livro seu saído há tanto tempo? Estes senhores têm cabeças de insecto é o que é. Que me tivessem carregado, pelo menos, em grande estilo. Quero dizer em braços, como uma diva. Não… Vim aos empurrões. Os brutos… Mas o que é que lhes passou pelas antenas? Tenho o cabelo e os olhos claros, mas acabam por aí as parecenças com a Inês. Nem sequer temos a mesma idade. Ai, ai, ai, ai, ai. O que hei-de fazer, para que eles entendam que cometeram um erro? Receio que me façam mal uma vez desfeito o equívoco. O cheiro a bafio do automóvel, em que me raptaram, é desagradável de tão intenso. Para uma pessoa de olfacto apurado, como eu, é uma tortura. Imagino que tenha estado fechado em alguma garagem, ou armazém. Os assentos colam-se à roupa o que me enoja, embora o asseio seja o menor dos meus problemas. Eles falam pouco entre si. Ordens e monossílabos. É tudo. O suficiente, no entanto, para perceber que todos, sem excepção, têm mau hálito e que, pelo menos, dois deles fumam. O que conduz fá-lo a grande velocidade e nenhum dos restantes se deu ao trabalho de me pôr o cinto de segurança. Já bati três vezes com a cabeça no vidro da janela em curvas mais apertadas. O que me vale é o mau génio, ou estaria a chorar como um bebé. Sou dada às reivindicações. Por sinal, estou desejosa de o fazer. À cautela, por agora, fico de bico fechado. A única frase que um deles me dirigiu foi proferida em tom sarcástico: “A vida de uma certa pessoa, minha menina, está nas tuas mãos.” Enquanto me tirava o livro. Não sou capaz de os identificar. Estão encapuzados. Dos olhos azuis glaciares do que me falou hei-de lembrar-me, sempre. O olho direito tem uma espécie de sinal em forma de lua. Inconfundível. «Por que há-de alguém querer raptar uma escritora?» Não tenho noção das horas. Sou despassarada. Como me encontro de venda e em andamento é irremediável que me sinta perdida. Seguimos a esta velocidade louca há horas, julgo. Não há meio de chegarmos a algum lado. Não suporto esta angústia. Que alguma coisa aconteça para que possa entender o que se passa, rapidamente, ou morro de síncope cardíaca, não tarda. Paramos. O silêncio ao redor é opressor. «Bem-feito para não seres ansiosa.» Estou apavorada.

- Vamos. – Diz-me o da íris esquisita, enquanto me puxa pelo braço, bruscamente, para fora da viatura. Sei ser esse, porque a sua voz na ocasião em que me agarrou se tornou inesquecível. Uma voz cavernosa. Retirou-me a mordaça.

- Onde? Posso saber? – Armando-me em esperta com o intuito de disfarçar o nervosismo.

- Calada. À minha frente. – O bafo quente na minha nuca provoca-me um arrepio que me lambe, desagradavelmente, a coluna. Uma porta abriu-se antes da minha e só essa se fechou. Deduzo que apenas este me acompanhará.

Começa a empurrar-me. Vou tropeçando e quase caio algumas vezes. Pela irregularidade do terreno e total ausência de ruído, só interrompida pelo cantar esporádico dos grilos, calculo estar longe da cidade. Estacamos subitamente. Ouço pancadas secas numa porta, que adivinho ser de madeira. Abre-se vagarosamente à minha frente e range.

- Entra.

- Sozinha? Quem me espera ali? Onde me deixam?

- Cala-te. Entra.

- Não vejo. Tire-me a venda, por favor. – Enfim, submissa.
- Entra, já te disse!

Tacteio a parede à minha direita. O raptor ordenou-me que, uma vez no interior, seguisse sempre encostada. Ouço um mecanismo que ora avança, ora se detém. No intervalo, um apito sonoro. Três toques e prossegue. Avanço pelo corredor, cautelosa. Tropeço num degrau e logo depois esbarro numa qualquer peça de mobiliário.

- Continua. – Diz uma voz diferente.

Estar cega é aterrador. Prossigo. Detecto degraus. São demasiado curtos. Opto por subi-los aos pares. Estão revestidos por um material que abafa os passos. Talvez alcatifa. A pessoa que me aguarda terá um bom ouvido, ou é demasiado impaciente, pois de cada vez que paro me incita de imediato e em tom ríspido, a continuar. Subi dois lances de escadas. Em cada um desses havia uma porta que me parecia de madeira em quadriculado, à qual me agarrava em busca de uma saída.

- Não é aí. Avança. – Diz-me a voz.

Atinjo o topo. Pressinto alguém muito perto e ouço uma chave rodar. Cinco voltas, numa pesada fechadura manuseada com aparente dificuldade. Um ligeiro safanão precipita-me para o interior. Sou orientada até um ponto em que uma pressão no ombro me faz sentar. O carcereiro retira-me a venda.

- Mas você é...
- Sou.
- Como? Está com cem anos, ou mais?
- Quem faz as perguntas sou eu. Por que é que foste comprar o livro, precisamente hoje? Porquê? – Está a falar-me tão perto que a saliva, com que me salpica, ainda está quente. Porém, a sua voz não se eleva.
- Apeteceu-me. Palavra. Lembrei-me dele e fui comprá-lo. Uma coincidência dos diabos.
- Não me faças rir. Não sou para brincadeiras. Ouves? Diz-me a verdade.

- É o que digo! Tive vontade. Recordei a primeira vez que o li e decidi adquiri-lo. Não tinha um exemplar em casa. Foi isto.

- Não acredito. Pensa bem no que fazes. Já te disseram que há uma vida em jogo?

- Que vida? O que é que eu lhe fiz? Diga-me? Sou inocente, ouve?! Seja lá o que for de que me acusa. Tenho dito. – Recupero alguma da insolência que me caracteriza e deito-lhe a língua de fora, qual traquinas. Ele ensaia uma bofetada, contudo, suspende o gesto mesmo junto à minha cara apertando-a com a mão direita. Faz-me sentir humilhada e impotente, com a fisionomia deformada entre as suas manápulas.

- Fica aí um bocadinho a pensar no que queres fazer à tua vida, que eu já venho. Fá-lo com cuidado pequena, que a minha paciência está a esgotar-se. Aguentarias a culpa?

- Sou inocente! – Grito-lhe uma vez mais.

O Senhor Almada. Quem diria? Ainda mais velho, embora semelhante ao que tinha guardado na memória: barba grisalha, bem aparada, corpo roliço, bengala na mão esquerda e aqueles dois grandes sinais escuros por debaixo dos olhos. Marcas de uma pele idosa. O cachecol vermelho, acessório do qual jamais se separava e que mantém, enrolado no pescoço da esquerda para a direita. Dois grandes anéis no anelar e no mindinho rematam a aparição. “Velhos hábitos morrem dificilmente.” Como se ouve nos filmes. Este senhor manteve-se fiel ao estilo que criou para si. Gosto disso. O que não aprecio é o modo como me trata. Conheci-o há uns anos, mas a relação que estabelecemos não justifica as cobranças que me faz. São descabidas. Absolutamente desconcertantes.

Consigo vê-lo daqui. Retirou-se para trás de um biombo que o oculta parcialmente. Percebo que se sentou ao que me parece ser uma secretária. Pela luz que lhe ilumina o rosto e pelo dedilhar, depreendo que se encontre ao computador. Resta-me estudar esta sumptuosa divisão. A profusão de objectos, achados arqueológicos de diferentes civilizações, mobiliário e obras de arte que me rodeiam, é intimidatória. Nestas alturas amaldiçoo a ignorância com que me tenho vestido ao longo da vida. Aqui estou, decerto, numa câmara de tesouros sem a conseguir avaliar. Apenas posso intuir o seu valor. Um quadro majestoso chama-me a atenção. Ocupa metade de uma das paredes. Trata-se de uma ilustração de uma queda de água, de grandes proporções, à frente da qual um homem insignificante, perante a força com que a natureza se lhe apresenta, monta um cavalo e empunha uma espécie de lança. Pondero: um indígena despido num remoto lugar do planeta. É como me sinto, qual homenzinho nu, empunhando uma azagaia quebradiça e ridícula, quando comparada à força indomável das águas de uma catarata. Ao lado há uma estante que se ergue até ao tecto. Contém dezenas de livros, todos do mesmo tamanho, com a mesma cor e de lombada igual. Sei que devia procurar as respostas que ele me intimou a dar, mas desconheço-as e esta sala é apaixonante demais para não me dedicar a observá-la. Três cores me invadem os sentidos: o vermelho, o azul e o verde água. Uma quarta cor neutra, consiste na luz emitida pelos candeeiros de formatos variados que se encontram dispersos pela assoalhada alumiando o que, sem esses, seria um local obscuro. Não fosse este o meu cativeiro e considerá-la-ia acolhedora. Sal digna de um lar de família. Sê-lo-á por ventura. As molduras proliferam em todas as superfícies: em cima de arcas de madeira, nas diferentes mesas, em cómodas. Revelam ternura, momentos de partilha, conquistas. O vermelho em excesso, pelo contrário, faz-me pensar no inferno. O meu. Até os estores são rubros. Fechou-os para me impedir de ver o que há para lá das duas janelas que tenho defronte. Ao meu lado esquerdo está um santo que fica à altura da minha cabeça, e à direita uma cruz de ferro. Fé agora? Não consigo. Com a cagufa até me esqueci das orações que costumo murmurar, todas as noites. Ui. Aí vem ele...

- Então? Como estamos de memória?
- Continuo sem saber o que fiz para merecer isto.
- Não te faças de vítima! Comigo essa ladainha não pega. Diz-me o que quero ouvir. Sem demora!

Exalta-se de tal maneira que se engasga e começa a tossir. Dada a velhice, senta-se num cadeirão de pele com rodinhas, que se encontra no lado oposto ao da minha localização, para recuperar o fôlego. Limpa com um lenço verde de pano, retirado do bolso, o suor que lhe invadira a fronte. Fecha os olhos, combalido. Para minha surpresa a sua respiração torna-se mais pesada, até se transformar num ronco. Dorme. A esperança que este acontecimento inesperado me suscita, injecta-me o ânimo que me faltava para procurar uma saída de emergência. Busco ao meu redor uma forma de me soltar. Constato que a cruz ao meu lado tem arestas afiadas. Rodo o corpo na cadeira e esfrego na antiguidade a fita-cola que me unia as mãos. O espelho à minha frente com linhas de um mapa-mundo, em duplicado, desenhadas, devolve-me a imagem de uma expressão que desconhecia, até então, em mim. Mistura de determinação e audácia sem, contudo, me encontrar corada como acontece, amiúde, quando me enervo. Este factor joga a meu favor. Ainda que ele acorde, não dará, no imediato, pela minha euforia. Levanto-me cuidadosamente para não fazer barulho e dirijo-me à lareira onde vira, há pouco, um telefone. Verifico se tem linha. Não tem. Muito prazer, Miss Azar 2009... Toco numa jarra chinesa que cai com grande estardalhaço. O Almada acorda e eu dou-lhe com o par da primeira, em cheio, no cocuruto. Cai atordoado, embora não inanimado e começa a levantar-se novamente. Precipito-me para a porta não sem antes guardar, dentro da camisola que entalo nas calças, o que me ficou ao alcance da mão. Mais tarde espero que me sirva de prova desta aventura e quem sabe, me permita incriminar o sujeito. Não tendo havido oportunidade para reflexões o que trouxe resume-se a uma cassete áudio Basf; uma cassete VHS e um desenho a carvão com diferentes caras, que arranquei da parede ao lado da porta da rua.
- Não tens escapatória! Mato-te se insistires na fuga. Mato-te! – Tenta dissuadir-me com palavras, já que não consegue mover-se rápido, quanto baste, para me alcançar sem o auxílio da bengala que, antes de o acordar, havia atirado para longe de si.
- Adeus! – Desafio a sua ira, com um último sorriso que manifesta mais temor do que coragem, embora esteja certa que ele não o interpretou assim.
A precipitação é tanta ao descer as escadas que me estatelo no chão. Bato com a cabeça na cómoda da entrada. O sangue quente rola-me cara abaixo. Não há azo a pieguices e abro a porta do prédio, espavorida. Verifico que os quatro que me abduziram não se encontram nas imediações e desato a correr, sem saber para onde. “Longe” é a palavra. Trouxeram-me para o meio de uma floresta. A noite está fria e paira uma neblina junto ao solo. A corrida ajuda a manter-me quente. Ouço os meus passos ritmados a partirem ramos e a chutarem pedras. As árvores falam-me com as folhas agitadas: Cuidado! Pela primeira vez desde que isto começou, percebo que talvez não me safe. A tenacidade vira desistência. Choro, as lágrimas misturam-se com o sangue. O vento seca-os deixando-me com uma sensação desagradável, como se tivesse uma máscara de argila colada à pele, endurecendo-me a expressão. Invoco a minha avó Fernanda: «Amélia, dos fracos não reza a história!» Mantenho a correria acelerada rumo ao incerto. Sei lá se não estarei a fazê-lo em círculo, no sentido da casa de onde fugi? Ouço o piar das corujas e o restolhar constante da vegetação. Apavoram-me. Volta e meia, ramos mais baixos prendem-se ao cabelo atrasando-me a marcha. O meu estado é deplorável. Apercebo-me, entretanto, que não são só os meus passos a rasgar a escuridão. Paro e escuto atenta. Há alguém no meu encalço. Não consigo pensar em mais. São eles! São eles! Rodo sobre mim desesperada em busca de um esconderijo. É no tronco oco de um eucalipto colossal que o acho. Entro rápida e discreta na cavidade e perscruto o bosque com o ouvido apurado. Quieta, sustenho a respiração diversas vezes. Quieta! Aparecem dois dos encapuzados.
- Inês é bom que apareças. Não dês muito trabalho a procurar-te. É pior para ti querida. – A voz medonha, não engana. É o tal, o do olho com a lua.
Anjo da guarda minha companhia guarda a minha alma de noite e de dia... – Ocorre-me rezar e acorrem-me, então, em catadupa à memória, todas as orações que aprendi, na infância, com a minha avó materna: Maximina.

O pânico é tanto que me urino. Sinto o quente encharcar-me a roupa e passados poucos minutos, instala-se o frio, chegando-me aos ossos.
- AAAAATCHOOOO. – Agora é que me lixei.
Consigo vê-los a correrem nesta direcção. Morrerei sem glória. Quando se encontram a cerca de dez metros da árvore em que me escondi, ouve-se um estrondo e um deles cai redondo no chão. Um tiro? Por segundos, foi como se o meu coração parasse. O outro bandido ajoelha-se ao lado do que foi atingido, pega-lhe no pulso e verifica se está vivo. Sem proferir palavra, dirige-se a passo cadenciado para cá. Outro estrondo. É ferido no ombro e corre para o meio das árvores embrenhando-se no bosque.
- Psst. – Ouço. Continuo no mesmo sítio quando uma mão estendida me aparece à altura dos olhos e me convida a agarrá-la e a sair. Que remédio. Alcanço-a tremendo e ergo-me.
- Inês? Inês Pedrosa? Como me descobriu?
- Não te descobri. Pergunta antes como te encontraste. Não julgam eles que és quem sou?
- Pois... – Digo baixo, baralhada.
- Temos de nos apressar, o outro anda perto.
- Acertaste-lhe.
- Sim, porém, apenas o atrasei. Seria preciso muito mais que uma simples bala para o demover.
- Quem são eles?
- Doentes.
- Como?
- Entes que acreditam ser, quando não o são de facto.
- A Inês desculpe. Sou uma pessoa simples, de ideias elementares e apesar de apreciar muito a sua escrita, não percebi patavina do que aqui se passa. Com todo o respeito que me merece, a realidade é que estou borrada de medo. O que fazemos?
- Vem comigo. Vou mostrar-te uma coisa.
Avançamos pela penumbra. Não faço ideia para onde a Inês me leva. Tenho de conter inúmeras vezes os espirros que ameaçam irromper, cada vez mais frequentes, dado o meu estado.
- Não receies. Sei o que faço.
Sigo-a em silêncio apertando o nariz e a boca com a mão direita, enquanto que com a esquerda esfrego rapidamente o corpo na tentativa vã de fazer o que a caminhada por si só, não está a conseguir.
Eis que me deparo com a fachada da casa que quis, há tão pouco, esquecer.
- A senhora enlouqueceu?
- Calada. Já te disse: Sei o que faço.
Encolho os ombros e faço novamente o aterrador percurso, desta feita, sem venda, sem mordaça, sem raptores. Pelo menos à primeira vista não os vejo. Tirito de frio, de horror, quem sabe de gripe A. Tremo qual gelatina, porém, sigo-a sem escolha. Entramos na casa e nem sinal do Almada.
- Reconheceste-o?
- Assim que o vi.
- E não estranhaste?
- Não! Sempre fui dada a crer no absurdo.
- Ok. Conheces a personagem de um livro em carne e osso e não temes, por um segundo, estar louca?
- Já vi acontecerem coisas mais improváveis. Intimamente, todas as personagens dos livros que leio são pessoas. Comovo-me, rio-me com e delas, amo-as e odeio-as, tal e qual como com às pessoas da minha vida.
- Tretas pá! Estás a brincar? O homem que te rapta é igual a um que só existe num livro que leste e não achas insólito?
- Cá para mim a Inês acaba de resvalar um bocadinho na linguagem.
- Ironias a esta hora não! Olha para a estante por favor.
- Ena, tantos livros!
- Olha de novo. Repara.
- Todos os livros são iguais. Mesmo tamanho. Mesma cor. Lombada idêntica. Já tinha percebido. O Almada é metódico e então?
- Vê o título...
- Ora, “Nas tuas mãos.”; “Nas tuas mãos.”; “Nas tuas mãos.”... Constato que todos os livros da estante são o mesmo. O tal que fora comprar à livraria antes disto tudo ter começado.
- Dá-me a K7 que tens contigo.
- Como é que sabe? – Soergo a sobrancelha direita, cumprindo um trejeito que aprendera a fazer em miúda.
- Coloca-a nesse gravador. – Indica-me um antigo, em cima de uma das muitas mesinhas que a divisão tem.
Iniciamos a audição da fita em conjunto. Trata-se de uma entrevista de Inês acerca do livro recém-lançado. Data de 1997.
- Ah. Compreendo agora porque nos confundiram. Julgam-me a Inês com menos doze anos...
- Começas a entender...
- Os outros? Também se julgam personagens dos seus textos?
- São-no, de facto...
- Como?
- Mostra-me o desenho. – Estendo-lho e ela vira-o para mim.
- São-te familiares, estas caras? Os diagramas estabelecendo relações? Os nomes?
Percorro rapidamente as diferentes feições retratadas. António, Jenny, Camila, Pedro, Anacleta, entre outros secundários no enredo. Todos os que conheci naquele livro se encontram definidos.
- Mas? – Incrédula. – O que pretendem?
- Outros destinos. Querem que os reescreva.
- Estão loucos. Como poderia?
- Estarão?
A porta range. Estivesse aflita e descuidava-me outra vez. Vejo-os entrar. Um por um, acomodam-se na divisão. Olho para Inês em pânico e observo-a serena.
- Ando a segui-los há meses. Hoje é o aniversário da data de casamento de Jenny com António. Manuel Almada tem tentado matá-lo todos os anos, por esta altura. Sem António fico sem história. Perco o triângulo António, Jenny e Pedro.
Ouço um objecto a cair que me distrai. Esfrego os olhos. O coração bate descompassado. Giro a cabeça. Livros. Livros. Livros. Já não os de lombada igual. Outros. Coloridos. Diversos. Olho para as calças. Estão molhadas, sim, de café. No chão, perto dos pés, o livro que me arrancara à realidade nos últimos minutos. Não saíra do andar de cima da livraria.

EPÍLOGO

Envergonhada olho em redor. Ninguém. Antes assim. Pego no livro com a capa marcada pela sola da minha bota e dirijo-me ao andar inferior para o pagar. Sorrio a Catarina, agradeço-lhe a amabilidade com que invariavelmente me recebem. - Ela e Ricardo. - Aperto o casaco que vesti entretanto, para me prevenir do frio no exterior. À porta esbarro com um sujeito que me fita intensamente. "Boa Noite." num timbre que se me cola ao corpo. Há uma meia-lua desenhada no seu olho. Arrepio-me. Sorrio-lhe lívida e saio da Trama. Sinto o livro a pulsar nas minhas mãos.

Dedicado a Raquel Ochoa que me ajudou a produzir alguns dos meus textos e a Manuel Vicente, o gentil arquitecto entretanto falecido, que nos recebeu no seu apaixonante apartamento com um grande sorriso e boa vontade.

Semana #29 – 27 de Setembro a 4 de Outubro de 2013 - Criado em Janeiro de 2010.
Andreia Azevedo Moreira
OBRIGADA POR ME LERES

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