Chove lá fora. Ouço as gotas baterem no plástico dos estores. Toc. Toc. Toc. Pic. Puc. O despertador falhou. O sol não encontrou
caminho nas frestas, nem ouço os passos apressados dos saltos altos da vizinha.
Acordei com frio. Há quantas horas me destapei? O robe «bordeaux» caiu da cama para lado nenhum. Procuro os chinelos com os
pés gelados. Espreito para debaixo da mesa-de-cabeceira, de mim. Não estão.
Tremo. Dirijo-me ao quarto de banho e meto-me na banheira. A água tarda em
aquecer. O morno nunca consola. Limpo-me a uma toalha branca que esqueci. Todos
os atoalhados desta casa são de cor garrida. Pelo menos, pensava serem. Sou
desconforto. Regresso ao quarto para escolher o que vestir. É o possível. A
roupa escondida. O mundo não acordou, como alguém que me gritasse: «Estás só.»
Tento situar-me. É fim-de-semana. Foram quatro os telefonemas sem resposta.
Onde me apetece ir? Agarro, instintivamente, na trela e deixo-a cair. O tic tic
tic das unhas, no soalho de madeira, cessou há muito. «Só.» Quanto peso numa palavra
tão pequena. Duas letras, um acento estridente a empurrar-me a cabeça para os
joelhos. A coluna arqueada. As pernas encolhidas. O estômago sem lugar. Para
onde foi a ilusão dos que me povoavam?
Aquele dia?
O instante?
Uma confidência?
Condenação. Creio que houvesse confiança na sua justiça, porém,
surpreendeu-me a unanimidade. Guardava fé na empatia. No ser possível
colocarem-se no meu lugar, ainda que no final não déssemos os mesmos passos.
Claro que nunca a pratiquei. Acontecesse com Sofia ou com Marcelo, os
intocáveis? Até o Lopes desistiu de me visitar e era dos que não podia falar descontraído.
De que vale mover-me, fazer o que quer que seja, não tendo para quem? Que
legitimidade atribuir aos movimentos involuntários dos pulmões e do coração? Apenas
eu assisto ao seu milagre. Não tenho respostas nem ânimo para me matar. Como me
defino? Pelo que fiz? Dou razão aos que se afastaram numa obediência de
exército? É importante o que penso, se todos se recusam a ouvir-me? Imagino que
habitava um daqueles lugares em que as questões se resolvem com uma massa
indiferenciada de gente a massacrar uma amálgama de tecidos, outrora organismo
humano. Teria sido melhor para mim ou para eles? Temia este abandono. Constato neste
frio, que visto como casaco justo, que não é aterrador o medo ao ganhar corpo.
Só. Todos os que subornei com ternura, para que não me deixassem, estão
ausentes. Para quê o empenho? Acabarei sem pares. Coisa pequena. Comparo-o com
o braço direito que levanto e ainda há uma mão, com cinco dedos, na
extremidade. O mesmo constato com o esquerdo. O sexo permanece central e pulsa
quente, capaz de amar. Seria um último aceno assim o desejasse? Montava-lhes
uma cilada, no Trindade ali ao Largo e, antes que conseguissem negar-ma,
concretizava a despedida.
«ADEUS!»
Reparem como as minhas mãos se movem não obstante o vosso repúdio.
Que digo? Necessito que tomem conhecimento. Mover-se-iam estes membros? Noto
que vejo cada vez pior. Ao espelho confirmo uma espécie de névoa. Embacia-me as
córneas. Diagnostico-me: «Cataratas». Não as da anatomia patológica, antes o
que optei por não chorar. Décadas a estancar emoções. Acreditei-me capaz de me
proteger. Agi como se a existência pudesse ser traduzida em gargalhadas e nada,
a não ser secura. Tudo é angústia. Apresentar-me bem, a todas as horas, foi uma
farsa. Não mo perdoaram. Não há pachorra para os alegres constantes. Teimam em desconsiderar
conscientes ou ignorantes o incontornável. Todo o esforço é inglório. Façamos o
que fizermos: correcto, incorrecto, horrendo, belo, altruísta, avaro, seja o
que for… Morreremos. Andei no passo certo, marchei ao ritmo que me instigaram,
guardei o corpo como pertencendo a outrem. Num advento desencadeado por circunstâncias
que não sei precisar, baralhei-me dentro. Resolvi que era ao contrário. As decisões
tomadas como certas afiguraram-se ao lado. Identifiquei as atitudes benignas como
subserviência. O que julguei para meu bem, afinal, havia-me prejudicado. Não
era tarde. Detinha gana para me pôr de pantanas. Fi-lo sem contemplações. A voz
da consciência colectiva calara-se. Não tinha o propósito de trazer desgosto aos
meus, mas não podia persistir nas mentiras que me contava para poder viver a
vida dos normais. Repus o que, à data, considerava a verdade. Quem mais me
estranhou foram os que se acreditavam íntimos. Puseram o ar «compreendo-te»
mais competente, enquanto se afastavam. Desagradava. Era pela impostura que
nutriam sentimentos. Não cedi. É terrível o momento em que concebemos a
condição de sermos isolados. Tinha ido ao cinema ver um filme do pós-guerra.
Saí da sala com o filme sobre os ombros. Abracei a minha amiga Rita, pela
última vez. Conduzia até casa e verguei à orfandade. As mãos salgadas e húmidas
escorregavam no volante.
«Não há quem me salve?»
«Não há quem me salve!»
«Não há quem me salve.»
Saio para adquirir uma bengala. O sol nunca ilumina os meus
passos. A sombra é o caminho. A ilusão de ter gente era melhor do que isto.
Para quê a insistência em obter a verdade? Sou incapaz de a sustentar. Não há
memória pior do que a dos olhos que amamos aturdidos de desconsolo. Uma vez
feita a descoberta, não há retorno. São olhos espancados. Devolvia esta constatação
de merda, pudesse confortar aqueles olhos de mágoa postos em mim. Não me
compete a clemência.
«Como foste capaz? Por que quiseste agarrar tudo? Qual é o teu
limite? Não sabes parar?»
Desculpa. Não sei. Desconheço como fui capaz ou de onde vem esta
ansiedade de sentir o mundo em falta comigo. Esta consciência de que não há
fronteiras para a ambição que alimento sobre a minha passagem pelo planeta.
Descobri-o tarde e é incontestável. A dor que me derruba? Procurei-a. Sonhei
com ela. Desejei-a em oposição à dormência, ao contentamento que não consigo destrinçar
da resignação. Temo-a. Recuso a serenidade incompetente para me provocar, para
me demonstrar que dentro de mim há vida. Ninguém no-la ensina fora das
restrições impostas pela culpa, pelo medo, pelo conforto. Gostava que ma
tivessem dado pura e que as escolhas fossem, de facto, minhas. Pensei em mim,
pois. Havia de pensar em quem?
«Abdico por ti. Não me deixes.»
Soa tão mal a cobrança. Concordam? Ão…Ão…Ão… Hey?! Hey?! Hey?! Eco.
Enlouqueço. A solidão dá-nos para falarmos sozinhos e para escutarmos o abismo.
Dessem-me a possibilidade de me redimir e não o faria.
«Eis um botão mágico que anula as tuas acções classificadas, pelos
demais, como perniciosas.»
Não seria premido. Olhá-lo-ia com curiosidade, ante o que poderia
ser-me devolvido. Haveria de me deixar estar a mirá-lo. Não pretendo perdão
para o pecado. Busco, incansável, a origem da palavra. Quem ma semeou no
cérebro? Quem ma coseu aos músculos submetendo o instinto animal? Quem a
costurou nos olhos e nos tímpanos dos semelhantes? Que justificação há para lhe
causar dor tamanha? Vivemo-la e à humilhação, mais o ciúme. De quê? Porquê?
«Aceitas beber um café? A minha amizade. Esta partilha de
conhecimentos, gostos ou de indomáveis vontades?»
Um café. Metáfora simples para o nosso encontro. Sim. Tomar um
café, ferir quem amamos, deitar fora o que é sólido, contudo, brando. Vamos a
isso. Um café já nos instiga esta adrenalina, imagina o resto. Um almoço. Uma
tarde. Um pretexto qualquer. Dá-nos mais do que tira? Insistamos nisto até que
um se farte ou alguém denuncie. Há sempre quem esteja disposto a expor, para
não ser exposto. É certo que não de dará em simultâneo. Um há-de se saber
coisa. Objecto gasto, amortizado. O picante dará lugar ao amargo. Conjectura-se
o quanto terá valido o desvio. Poderíamos passar sem aquele café? Sem os risos-malícia,
o toque primordial? Por que não se recusou? Tantos podem ser os motivos para
dizer «não» como os que nos impelem ao «sim». Quem mede o impacto das
consequências? A que profundidade nos atingem? «Aceito tomar café.» O que tinha
dava-me tanto, mas não tudo. Nada lhe faltava. A carência era minha. No
primeiro «sim» ignorava o poder da matéria. Aprendi a calar, não a dizer, o que
quero. Ser capaz de me olhar, sem vergonha, é a conquista. Inábil para me acolher
qual ser imperfeito. O avanço da idade trouxe-me a capacidade de apreciar o deleite.
A maturidade, também. O entendimento de que a urgência apaga inseguranças e de
que todos andamos à deriva. O prazer sobreveio. Por que não fui capaz de aliar o
preceito à transgressão? Há os que mentem. Os que omitem. Imaculados não há. Há
quem vá beber a bica e quem a recuse. Suspeito que não seja o carácter o que as
demove. Há vencedores? Haverá condecorações suficientes para os dignos do céu?
Por que fere a busca de emoção? Como alcançá-la quando nos desconhecemos de
cor? Por que se adivinha apelativa uma pessoa estranha? Pode matar-me. Pode
convidar-me para um café, de sabor intenso, em chávena que queima. Podia dizer «sim».
Podia dizer «não». Podia provar-te tão-só com os lábios e aguardar que arrefecesses.
Podíamos ter fingido que não nos vimos. A inocência não torna. O quotidiano mata
e, no entanto, foi a ausência de uma rotina comum, a causa do óbito redigida na
certidão dos acasos. A determinada altura falha alguma coisa. Falha-se sempre.
O amor constrói-se no conforto da repetição. No nada também nascem exigências,
não haja ilusões neste aspecto. É a expectativa do colo falho. Daí não nos termos
amado? O desalento instalara-se. Era do nosso conhecimento. Prosseguíamos
obstinados, programados numa absoluta sincronia de infelicidade. Adoecemos.
Implodir soa aterrador e é mais fácil do que se supõe. No início, os próximos
simularam aceitar. A situação degradou-se ao notarem a minha falta de arrependimento
e que continuava a viver o que os dias me apresentassem. Lançaram-me acusações
rectas: Necessidade. Aguentar. Confiança. Lealdade. Correcção. Verticalidade.
Testemunhas. Integridade. Ética. Compromisso. Dever. Respeito. Doença. Em todos
os dias da vossa. Alegria. Tristeza. Votos.
«Não era feliz.»
«Que disparate! Alguém o é?»
Não havendo quem o seja, qual a legitimidade para a tentativa?
«Não podes ter tudo.»
Não se tratava de ter. Naquele momento não queria possuir.
Tratava-se, sim, de experienciar. De ser.
«Não te matei.»
«Teria sido melhor.»
«A tua vida não é minha.»
«Depositei-ta nas mãos. No coração. Era tua.»
«E tu? Que responsabilidade te resta sobre a tua própria vida?»
«Qual vida?»
Tornara-se claro que o diálogo se desenrolaria entre duas personagens
principais, uma vítima e uma culpada e as secundárias, os auto-proclamados júri.
Não tinha vontade de o prolongar. Não me definia como a primeira nem a segunda,
tão-pouco tinha talento para insistir na representação. Viu que se encontrava
sem contracena. Enraiveceu. Virou bicho ferido a dar coices na morte. Não o
terá feito com maldade mas foi hábil na persuasão daqueles que nos ligavam.
«E tu? Como estás? Como chegaste a este ponto?»
Silêncio. Afastamento. Não me perguntaram o que quer que fosse.
Procedera mal.
«Não existes.»
No início pareceu-me adequado que pagasse pelos meus actos. Depois
deu-me para pensar pela minha cabeça e percebi que me culpavam, sobretudo, por
arriscar. Por me pôr em causa e aos meus padrões então refutados. Deixava-os
inseguros e a questionarem-se sobre si mesmos. O que os impedia? A vontade
própria ou a do grupo? Era miserável e o coro não se reunia. Ninguém para se
preocupar com as minhas opções. Quando o sorriso se instalou no meu rosto, apareceram
os valorosos inquietos com o restabelecimento da paz e da ordem. A norma já não
me interessa. Os afectos, sim. Recuso o rótulo da leviandade. Capricho? Pode a
espontaneidade sê-lo?
«Antes de desapareceres, quero que saibas o quanto gostei do que
pude conhecer-te. Não apenas do teu corpo e da novidade que me trouxeste aos
dias. Naquela noite em que te desembaraçaste do meu abraço, com uma rapidez
desconcertante, não o interpretei como desprezo. Apiedei-me de ti e do teu
constrangimento. Deve ser triste não saberes o que fazer de um gesto puro.»
A liberdade tem um preço. Paga-se em anos de solidão. Aceitar é a
palavra mais enganadora. O que se costuma fazer é aprovar enquanto se nos
assemelha. O que escapa ao nosso entendimento merece-nos primeiro a estranheza,
depois a repulsa veemente, mais tarde descartamos as supostas diferenças, como
quem recicla o lixo. Que nos venham parar às mãos as embalagens apelativas,
porque as amachucadas não aguentamos. Parecem-se demasiado connosco.
O perdão há-de chegar, com a actuação do esquecimento próprio das
mentes humanas. Não darei por isso. Não tenho como regressar.
Na Rua, as pessoas assustam-me. Vislumbro vultos acelerados que me
ultrapassam ou se cruzam comigo, deslocando o ar ao meu redor. Desequilibram-me
sem me tocarem. É ameaçador o vaivém. Acredito que não me vêem. Pressentem,
talvez, um incómodo. Uma chamada de atenção que dispensam. Será unânime a noção
de que não presto? Comprei a bengala. Entorta-me o andar. Coxeio como se o
problema fosse nos ossos ao invés de o ser na visão. Não me vêem. Não vejo.
Chove, ainda.
Toc. Toc. Toc. Pic. Puc.
Tremo. Quantos minutos de desamparo me restam? Dezenas. Centenas.
Milhares. Consigo viver desta maneira, é evidente. A questão é: «Quero?» O que
faço desta total autonomia? A revelação transformou-se em banalidade. A
aventura já cheira a rotina. Não há como escapar. O proibido desvaneceu-se nas
próprias regras. A impressão de existir esbate-se.
Quase não vejo.
Quase não ouço.
Quase não falo.
Converso comigo, poucas vezes, como agora. Ando por cá sem
intervenção no meio. Comovem-me as saudades de certas pessoas. Sinto falta da
percepção do que é exterior a mim, proporcionada pelos outros. Apesar das
obrigações, das fronteiras e das morais impositivas. Falta-me um encaixe. Poderia
ser ilusório. Não há calor neste estado. Os sentidos perderam-se neste espaço
imenso que criei ao meu redor. Tacteio, na penumbra, o regresso à cama. O robe
estava pendurado no corrimão do prédio. A vizinha tem esse costume, com a roupa
alheia caída no seu estendal. Evita incomodar com campainhas. Voou enquanto
estendia a máquina de cores escuras. Em que dia? Tropecei nos chinelos a
caminho do quarto. Sento-me na cama. Apalpo a textura da colcha. Recordo-a
azul-marinho, com quadrados. Chego-me para o meio. É o ponto certo para erguer
os pés e me deitar equidistante da cabeceira e do fundo. O telefone toca com
susto. Atendo. Ouço, primeiro, alguém suspirar. É o tom da preocupação.
- Onde tens andado? Andamos doidos à tua procura.
Tenho a cabeça na direcção do espelho do guarda-fatos. O vulto defronte torna-se nítido. Sorri. Há afecto na imagem.
- Eu também.
De 14/01/2015 a 13/09/2015. Última revisão em 21/09/2015.
OBRIGADA POR
ME LERES.
Andreia Azevedo Moreira
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OBRIGADA POR ME LERES.