segunda-feira, 21 de setembro de 2015

«JULGAMENTO»



Chove lá fora. Ouço as gotas baterem no plástico dos estores. Toc. Toc. Toc. Pic. Puc. O despertador falhou. O sol não encontrou caminho nas frestas, nem ouço os passos apressados dos saltos altos da vizinha. Acordei com frio. Há quantas horas me destapei? O robe «bordeaux» caiu da cama para lado nenhum. Procuro os chinelos com os pés gelados. Espreito para debaixo da mesa-de-cabeceira, de mim. Não estão. Tremo. Dirijo-me ao quarto de banho e meto-me na banheira. A água tarda em aquecer. O morno nunca consola. Limpo-me a uma toalha branca que esqueci. Todos os atoalhados desta casa são de cor garrida. Pelo menos, pensava serem. Sou desconforto. Regresso ao quarto para escolher o que vestir. É o possível. A roupa escondida. O mundo não acordou, como alguém que me gritasse: «Estás só.» Tento situar-me. É fim-de-semana. Foram quatro os telefonemas sem resposta. Onde me apetece ir? Agarro, instintivamente, na trela e deixo-a cair. O tic tic tic das unhas, no soalho de madeira, cessou há muito. «Só.» Quanto peso numa palavra tão pequena. Duas letras, um acento estridente a empurrar-me a cabeça para os joelhos. A coluna arqueada. As pernas encolhidas. O estômago sem lugar. Para onde foi a ilusão dos que me povoavam?

Aquele dia?
O instante?
Uma confidência?

Condenação. Creio que houvesse confiança na sua justiça, porém, surpreendeu-me a unanimidade. Guardava fé na empatia. No ser possível colocarem-se no meu lugar, ainda que no final não déssemos os mesmos passos. Claro que nunca a pratiquei. Acontecesse com Sofia ou com Marcelo, os intocáveis? Até o Lopes desistiu de me visitar e era dos que não podia falar descontraído. De que vale mover-me, fazer o que quer que seja, não tendo para quem? Que legitimidade atribuir aos movimentos involuntários dos pulmões e do coração? Apenas eu assisto ao seu milagre. Não tenho respostas nem ânimo para me matar. Como me defino? Pelo que fiz? Dou razão aos que se afastaram numa obediência de exército? É importante o que penso, se todos se recusam a ouvir-me? Imagino que habitava um daqueles lugares em que as questões se resolvem com uma massa indiferenciada de gente a massacrar uma amálgama de tecidos, outrora organismo humano. Teria sido melhor para mim ou para eles? Temia este abandono. Constato neste frio, que visto como casaco justo, que não é aterrador o medo ao ganhar corpo. Só. Todos os que subornei com ternura, para que não me deixassem, estão ausentes. Para quê o empenho? Acabarei sem pares. Coisa pequena. Comparo-o com o braço direito que levanto e ainda há uma mão, com cinco dedos, na extremidade. O mesmo constato com o esquerdo. O sexo permanece central e pulsa quente, capaz de amar. Seria um último aceno assim o desejasse? Montava-lhes uma cilada, no Trindade ali ao Largo e, antes que conseguissem negar-ma, concretizava a despedida.

«ADEUS!»

Reparem como as minhas mãos se movem não obstante o vosso repúdio. Que digo? Necessito que tomem conhecimento. Mover-se-iam estes membros? Noto que vejo cada vez pior. Ao espelho confirmo uma espécie de névoa. Embacia-me as córneas. Diagnostico-me: «Cataratas». Não as da anatomia patológica, antes o que optei por não chorar. Décadas a estancar emoções. Acreditei-me capaz de me proteger. Agi como se a existência pudesse ser traduzida em gargalhadas e nada, a não ser secura. Tudo é angústia. Apresentar-me bem, a todas as horas, foi uma farsa. Não mo perdoaram. Não há pachorra para os alegres constantes. Teimam em desconsiderar conscientes ou ignorantes o incontornável. Todo o esforço é inglório. Façamos o que fizermos: correcto, incorrecto, horrendo, belo, altruísta, avaro, seja o que for… Morreremos. Andei no passo certo, marchei ao ritmo que me instigaram, guardei o corpo como pertencendo a outrem. Num advento desencadeado por circunstâncias que não sei precisar, baralhei-me dentro. Resolvi que era ao contrário. As decisões tomadas como certas afiguraram-se ao lado. Identifiquei as atitudes benignas como subserviência. O que julguei para meu bem, afinal, havia-me prejudicado. Não era tarde. Detinha gana para me pôr de pantanas. Fi-lo sem contemplações. A voz da consciência colectiva calara-se. Não tinha o propósito de trazer desgosto aos meus, mas não podia persistir nas mentiras que me contava para poder viver a vida dos normais. Repus o que, à data, considerava a verdade. Quem mais me estranhou foram os que se acreditavam íntimos. Puseram o ar «compreendo-te» mais competente, enquanto se afastavam. Desagradava. Era pela impostura que nutriam sentimentos. Não cedi. É terrível o momento em que concebemos a condição de sermos isolados. Tinha ido ao cinema ver um filme do pós-guerra. Saí da sala com o filme sobre os ombros. Abracei a minha amiga Rita, pela última vez. Conduzia até casa e verguei à orfandade. As mãos salgadas e húmidas escorregavam no volante.

«Não há quem me salve?»
«Não há quem me salve!»
«Não há quem me salve.»

Saio para adquirir uma bengala. O sol nunca ilumina os meus passos. A sombra é o caminho. A ilusão de ter gente era melhor do que isto. Para quê a insistência em obter a verdade? Sou incapaz de a sustentar. Não há memória pior do que a dos olhos que amamos aturdidos de desconsolo. Uma vez feita a descoberta, não há retorno. São olhos espancados. Devolvia esta constatação de merda, pudesse confortar aqueles olhos de mágoa postos em mim. Não me compete a clemência.

«Como foste capaz? Por que quiseste agarrar tudo? Qual é o teu limite? Não sabes parar?»

Desculpa. Não sei. Desconheço como fui capaz ou de onde vem esta ansiedade de sentir o mundo em falta comigo. Esta consciência de que não há fronteiras para a ambição que alimento sobre a minha passagem pelo planeta. Descobri-o tarde e é incontestável. A dor que me derruba? Procurei-a. Sonhei com ela. Desejei-a em oposição à dormência, ao contentamento que não consigo destrinçar da resignação. Temo-a. Recuso a serenidade incompetente para me provocar, para me demonstrar que dentro de mim há vida. Ninguém no-la ensina fora das restrições impostas pela culpa, pelo medo, pelo conforto. Gostava que ma tivessem dado pura e que as escolhas fossem, de facto, minhas. Pensei em mim, pois. Havia de pensar em quem?

«Abdico por ti. Não me deixes.»

Soa tão mal a cobrança. Concordam? Ão…Ão…Ão… Hey?! Hey?! Hey?! Eco. Enlouqueço. A solidão dá-nos para falarmos sozinhos e para escutarmos o abismo. Dessem-me a possibilidade de me redimir e não o faria.

«Eis um botão mágico que anula as tuas acções classificadas, pelos demais, como perniciosas.»

Não seria premido. Olhá-lo-ia com curiosidade, ante o que poderia ser-me devolvido. Haveria de me deixar estar a mirá-lo. Não pretendo perdão para o pecado. Busco, incansável, a origem da palavra. Quem ma semeou no cérebro? Quem ma coseu aos músculos submetendo o instinto animal? Quem a costurou nos olhos e nos tímpanos dos semelhantes? Que justificação há para lhe causar dor tamanha? Vivemo-la e à humilhação, mais o ciúme. De quê? Porquê?

«Aceitas beber um café? A minha amizade. Esta partilha de conhecimentos, gostos ou de indomáveis vontades?»

Um café. Metáfora simples para o nosso encontro. Sim. Tomar um café, ferir quem amamos, deitar fora o que é sólido, contudo, brando. Vamos a isso. Um café já nos instiga esta adrenalina, imagina o resto. Um almoço. Uma tarde. Um pretexto qualquer. Dá-nos mais do que tira? Insistamos nisto até que um se farte ou alguém denuncie. Há sempre quem esteja disposto a expor, para não ser exposto. É certo que não de dará em simultâneo. Um há-de se saber coisa. Objecto gasto, amortizado. O picante dará lugar ao amargo. Conjectura-se o quanto terá valido o desvio. Poderíamos passar sem aquele café? Sem os risos-malícia, o toque primordial? Por que não se recusou? Tantos podem ser os motivos para dizer «não» como os que nos impelem ao «sim». Quem mede o impacto das consequências? A que profundidade nos atingem? «Aceito tomar café.» O que tinha dava-me tanto, mas não tudo. Nada lhe faltava. A carência era minha. No primeiro «sim» ignorava o poder da matéria. Aprendi a calar, não a dizer, o que quero. Ser capaz de me olhar, sem vergonha, é a conquista. Inábil para me acolher qual ser imperfeito. O avanço da idade trouxe-me a capacidade de apreciar o deleite. A maturidade, também. O entendimento de que a urgência apaga inseguranças e de que todos andamos à deriva. O prazer sobreveio. Por que não fui capaz de aliar o preceito à transgressão? Há os que mentem. Os que omitem. Imaculados não há. Há quem vá beber a bica e quem a recuse. Suspeito que não seja o carácter o que as demove. Há vencedores? Haverá condecorações suficientes para os dignos do céu? Por que fere a busca de emoção? Como alcançá-la quando nos desconhecemos de cor? Por que se adivinha apelativa uma pessoa estranha? Pode matar-me. Pode convidar-me para um café, de sabor intenso, em chávena que queima. Podia dizer «sim». Podia dizer «não». Podia provar-te tão-só com os lábios e aguardar que arrefecesses. Podíamos ter fingido que não nos vimos. A inocência não torna. O quotidiano mata e, no entanto, foi a ausência de uma rotina comum, a causa do óbito redigida na certidão dos acasos. A determinada altura falha alguma coisa. Falha-se sempre. O amor constrói-se no conforto da repetição. No nada também nascem exigências, não haja ilusões neste aspecto. É a expectativa do colo falho. Daí não nos termos amado? O desalento instalara-se. Era do nosso conhecimento. Prosseguíamos obstinados, programados numa absoluta sincronia de infelicidade. Adoecemos. Implodir soa aterrador e é mais fácil do que se supõe. No início, os próximos simularam aceitar. A situação degradou-se ao notarem a minha falta de arrependimento e que continuava a viver o que os dias me apresentassem. Lançaram-me acusações rectas: Necessidade. Aguentar. Confiança. Lealdade. Correcção. Verticalidade. Testemunhas. Integridade. Ética. Compromisso. Dever. Respeito. Doença. Em todos os dias da vossa. Alegria. Tristeza. Votos.

«Não era feliz.»
«Que disparate! Alguém o é?»
Não havendo quem o seja, qual a legitimidade para a tentativa?
«Não podes ter tudo.»
Não se tratava de ter. Naquele momento não queria possuir. Tratava-se, sim, de experienciar. De ser.
«Não te matei.»
«Teria sido melhor.»
«A tua vida não é minha.»
«Depositei-ta nas mãos. No coração. Era tua.»
«E tu? Que responsabilidade te resta sobre a tua própria vida?»
«Qual vida?»

Tornara-se claro que o diálogo se desenrolaria entre duas personagens principais, uma vítima e uma culpada e as secundárias, os auto-proclamados júri. Não tinha vontade de o prolongar. Não me definia como a primeira nem a segunda, tão-pouco tinha talento para insistir na representação. Viu que se encontrava sem contracena. Enraiveceu. Virou bicho ferido a dar coices na morte. Não o terá feito com maldade mas foi hábil na persuasão daqueles que nos ligavam.

«E tu? Como estás? Como chegaste a este ponto?»

Silêncio. Afastamento. Não me perguntaram o que quer que fosse. Procedera mal.

«Não existes.»

No início pareceu-me adequado que pagasse pelos meus actos. Depois deu-me para pensar pela minha cabeça e percebi que me culpavam, sobretudo, por arriscar. Por me pôr em causa e aos meus padrões então refutados. Deixava-os inseguros e a questionarem-se sobre si mesmos. O que os impedia? A vontade própria ou a do grupo? Era miserável e o coro não se reunia. Ninguém para se preocupar com as minhas opções. Quando o sorriso se instalou no meu rosto, apareceram os valorosos inquietos com o restabelecimento da paz e da ordem. A norma já não me interessa. Os afectos, sim. Recuso o rótulo da leviandade. Capricho? Pode a espontaneidade sê-lo?

«Antes de desapareceres, quero que saibas o quanto gostei do que pude conhecer-te. Não apenas do teu corpo e da novidade que me trouxeste aos dias. Naquela noite em que te desembaraçaste do meu abraço, com uma rapidez desconcertante, não o interpretei como desprezo. Apiedei-me de ti e do teu constrangimento. Deve ser triste não saberes o que fazer de um gesto puro.»

A liberdade tem um preço. Paga-se em anos de solidão. Aceitar é a palavra mais enganadora. O que se costuma fazer é aprovar enquanto se nos assemelha. O que escapa ao nosso entendimento merece-nos primeiro a estranheza, depois a repulsa veemente, mais tarde descartamos as supostas diferenças, como quem recicla o lixo. Que nos venham parar às mãos as embalagens apelativas, porque as amachucadas não aguentamos. Parecem-se demasiado connosco.
O perdão há-de chegar, com a actuação do esquecimento próprio das mentes humanas. Não darei por isso. Não tenho como regressar.
Na Rua, as pessoas assustam-me. Vislumbro vultos acelerados que me ultrapassam ou se cruzam comigo, deslocando o ar ao meu redor. Desequilibram-me sem me tocarem. É ameaçador o vaivém. Acredito que não me vêem. Pressentem, talvez, um incómodo. Uma chamada de atenção que dispensam. Será unânime a noção de que não presto? Comprei a bengala. Entorta-me o andar. Coxeio como se o problema fosse nos ossos ao invés de o ser na visão. Não me vêem. Não vejo. Chove, ainda.

Toc. Toc. Toc. Pic. Puc.

Tremo. Quantos minutos de desamparo me restam? Dezenas. Centenas. Milhares. Consigo viver desta maneira, é evidente. A questão é: «Quero?» O que faço desta total autonomia? A revelação transformou-se em banalidade. A aventura já cheira a rotina. Não há como escapar. O proibido desvaneceu-se nas próprias regras. A impressão de existir esbate-se.

Quase não vejo.
Quase não ouço.
Quase não falo.

Converso comigo, poucas vezes, como agora. Ando por cá sem intervenção no meio. Comovem-me as saudades de certas pessoas. Sinto falta da percepção do que é exterior a mim, proporcionada pelos outros. Apesar das obrigações, das fronteiras e das morais impositivas. Falta-me um encaixe. Poderia ser ilusório. Não há calor neste estado. Os sentidos perderam-se neste espaço imenso que criei ao meu redor. Tacteio, na penumbra, o regresso à cama. O robe estava pendurado no corrimão do prédio. A vizinha tem esse costume, com a roupa alheia caída no seu estendal. Evita incomodar com campainhas. Voou enquanto estendia a máquina de cores escuras. Em que dia? Tropecei nos chinelos a caminho do quarto. Sento-me na cama. Apalpo a textura da colcha. Recordo-a azul-marinho, com quadrados. Chego-me para o meio. É o ponto certo para erguer os pés e me deitar equidistante da cabeceira e do fundo. O telefone toca com susto. Atendo. Ouço, primeiro, alguém suspirar. É o tom da preocupação. 

- Onde tens andado? Andamos doidos à tua procura.

Tenho a cabeça na direcção do espelho do guarda-fatos. O vulto defronte torna-se nítido. Sorri. Há afecto na imagem.

- Eu também.

De 14/01/2015 a 13/09/2015. Última revisão em 21/09/2015.

OBRIGADA POR ME LERES.

Andreia Azevedo Moreira

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