sexta-feira, 4 de março de 2016

II - Ele

                                                                                                                                                                   
Ruge.

«Tardaste.»

Ensurdecedora a saudade instalada nos meses de afastamento. Regresso desde a primeira edição. Revolve-se sobre si mesmo indignado. A espuma beija-me o rosto. Não dou explicações do que tenho a fazer além do amor.

«Estou aqui.»

Aproxima-se devorando areia. Quase toca a ponta dos meus sapatos negros. É da sua natureza chegar perto dos homens. Insiste no amuo. Eleva-se para desabar numa voragem. Amo-o na fúria.

«Demorar-me-ei pouco, aqui. Quero assistir ao instante primordial.»

«Fica. Quem és, lá?»

«Vou. Não posso viver de azul, do sabor do teu sal, no estado líquido. Sou de todos os lugares.»

Recolhe as vagas enraivecido. «Se amas, por que te ausentas?»

Fixa-se no horizonte, linha pesada. O céu cinzento-escuro prenuncia os segredos de ambos. Guardo-os discreta. Ninguém nos assiste ao desencontro. Inauguro um abraço manso mas a inquietação mantém-se. Subo ao murete e acelero ao longo da Marginal. Menosprezo consciente o escasso espaço para os pés. Desequilibro-me. Do chão observo o firmamento. Levanto-me inteira e continuo a marcha pela ciclovia. Há poucos ciclistas nesta altura do ano. Aí vem um. Encara-me de olhos azuis questionadores e cabelo comprido. Relembro o italiano por quem me enamorei em adolescente e a quem entreguei a minha camisola preferida, reminiscência da história fugaz que vivemos. Ter-me-á visto. Baptizo-o: Veracini. Adoro distribuir nomes pelas pessoas com quem me cruzo. Estou tranquila. Vinte e três são os minutos previstos até ao Casino. Ele acompanha-me no ombro direito, rebenta esclarecedor. Tenta dissuadir-me. Deixo-o na praia da Redonda. Para trás, mil e novecentos metros percorridos e os edifícios que o guardam: o Estádio, o Hotel A-Ver-o-Mar, o Carvalhido, o Bar com nome de marujo, o Guardador do sol, o Enseada. A zanga dele não é ciúme por isso a relevo. A preocupação enternece. Avisto o edifício amarelo esmaecido a encher-se de passos, júbilos e reencontros pela escadaria. Noto cumplicidades e implicâncias. Depois de dezassete anos são afecto. Anseio pertencer. Basta-me estar. O auditório silencia-se. Sou fantasma benigno entre os que nunca darão pela minha presença. O homenageado fala para a audiência de ouvidos alfabetizados e reverenciadores. Irrequieto avança no palco gesticulando. Distribui tesouro confiado ao futuro. Passá-lo-emos de leitor em leitor. Escutei-o com atenção e às palavras ambulantes. Aprendo com ele a paciência. São necessárias a espera e a frustração. O desnorte. A dor. Sim, a dor imensa. Pressinto que me avista do palco. Um vislumbre. Intuição. A loucura?  
  
«Te enxergo. Estás aí no meio da multidão de cadernos pretos de cantos arredondados. Nada te distingue.» Faltou-lhe rebater a declaração. Ansiava um «contudo» inconcebível. Nada me diferencia de facto. Posso ser jornalista ou crítica. Mirone, perseguidora, leitora, desempregada com tempo a sobrar nas palmas. Interesseira. Aduladora. Convicta de escrever, não acrescento. Componho narrativas imperfeitas quase engraçadas, distantes de serem «Justas.» Dir-me-ia. Experimentei um piparote no ombro do espectador defronte. Olhou para trás de viés e como não achou o que o incomodara voltou-se, de novo, para as palavras do peripatético. Deixei cair a caneta aos pés do anotador ao lado. Nem se moveu com o peso de uma cabeça no colo. Molhei-o de desalento. Sacudiu as calças, desconcertado e movimentou-se com vigor adicional. Motivada e imaginativa questiono-me. Quantos abismos de papel a transpor. Rodeio-me dos que trabalham, deveras, atribuo à má sorte os fracos resultados. Remeto-me ao silêncio. Quem me quer ler nas entrelinhas do que omito. Falta-me o quê. Admito que em data indeterminável secou a tinta desta caneta que estimo sem eu ter alinhado três parágrafos. Usava-a para tópicos, citações de terceiros e listas de supermercado: Uma garrafa de vinho branco; Tostas tradicionais estaladiças; Um queijo Camembert; Um sabonete; Um maço de tabaco; Preservativos. Comovo-me com caixas coloridas. Compro-as sem lhes dar uso. Quem deseja copular com a falência. Colecciono canetas inúteis, moleskines-promessa, embalagens de sexo-mais-que-seguro e reúno ilusões. Erro transparente. Um assobio. A brisa nos dias de calma. Alcanço na saída a revista oferecida aos fiéis e meto-a debaixo do braço. Imagino-a na estante no anexo pequeno onde habito, no sótão do n.º 1308 à Ajuda. Finda a solenidade precipito-me para o exterior. Saltito como as crianças em pulos elevados e amplos. Passeio alegre na direcção da praia. Leve. Esclarecida. Ele aguarda-me furioso.

«Por que te submetes?»

«Hum

«Por que te preocupa darem por ti?»

«Ah. Amar é isto mesmo de te colocares em risco. Dares o peito à seta de quem empunha a besta engatilhada. Com confiança. Não o farias? A maior parte das minhas horas são paralisia. Careço da tua intrepidez. Resta-me expressar na redacção o rebentar das ondas como as tuas. Ondas importantes. Ondas que inundem.»

«Escrever? Combinar palavras?»

Forma-se coluna vertebral gigante a meia milha de mim. Levanta-se numa gruta ameaçadora.

«Sabes quantas pessoas se sentam aí, alheadas como tu? Sonham e a realidade enganadora. Alguns mergulharam na intenção de não regressarem. Pediram-me que os engolisse. Concordei. Os delírios pesam. Não te quero devorar. Amo-te. Conseguiria mentir. Opto por assegurar: És somente um corpo que flutua.»

«Também tu?»

Procuro um restaurante para almoçar não para fugir da chuva nem pela sede ou pela fome, incomodam pouco, antes para rever o bloco dos romances porvir. Inquieta-me a esferográfica bordeaux inactiva. As redacções calcadas no papel, meros lamentos do que pensei. Hei-de reler os sulcos gravados com risível firmeza. Incómodo. Escrevo para quem. Talvez a tinta seque para me poupar à incompetência. Deverei desistir de enganar com a verdade.

«Compra uma.»

«Esqueci-me da carteira no hotel. O dinheiro à recta para a refeição ligeira antes das mesas da tarde.»

«Tens um telemóvel de última geração e o portátil na mochila. Para quê a obsoleta esferográfica?»

«Obsoleta? É-o o coração? O cérebro?»

«Excentricidades. Quem escreve à mão?»

«Eu escrevo.»

«Cala-te. Confessaste-mo: secou há dias. Anos?»

«Tenho vivido.»

«Este tempo todo? Tens a certeza?»

«O necessário para passar o teste do desejo.»

«Desejo?»

«Permito a combustão do entusiasmo e busco possibilidades nas cinzas.»

«Soa a adiamento.»

«Comprá-la-ei.»

«Acreditarei, assim declares: Tenho-a


 Andreia Azevedo Moreira
Novembro-Dezembro de 2015
«Quebrar a corrente»




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