Ruge.
«Tardaste.»
Ensurdecedora a saudade instalada
nos meses de afastamento. Regresso desde a primeira edição. Revolve-se sobre si
mesmo indignado. A espuma beija-me o rosto. Não dou explicações do que tenho a fazer
além do amor.
«Estou aqui.»
Aproxima-se devorando
areia. Quase toca a ponta dos meus sapatos negros. É da sua natureza chegar
perto dos homens. Insiste no amuo. Eleva-se para desabar numa voragem. Amo-o na
fúria.
«Demorar-me-ei pouco, aqui.
Quero assistir ao instante primordial.»
«Fica. Quem és, lá?»
«Vou. Não posso viver de
azul, do sabor do teu sal, no estado líquido. Sou de todos os lugares.»
Recolhe as vagas enraivecido.
«Se amas, por que te ausentas?»
Fixa-se no horizonte, linha
pesada. O céu cinzento-escuro prenuncia os segredos de ambos. Guardo-os
discreta. Ninguém nos assiste ao desencontro. Inauguro um abraço manso mas a inquietação
mantém-se. Subo ao murete e acelero ao longo da Marginal. Menosprezo consciente
o escasso espaço para os pés. Desequilibro-me. Do chão observo o firmamento.
Levanto-me inteira e continuo a marcha pela ciclovia. Há poucos ciclistas nesta
altura do ano. Aí vem um. Encara-me de olhos azuis questionadores e cabelo
comprido. Relembro o italiano por quem me enamorei em adolescente e a quem
entreguei a minha camisola preferida, reminiscência da história fugaz que
vivemos. Ter-me-á visto. Baptizo-o: Veracini. Adoro distribuir nomes pelas
pessoas com quem me cruzo. Estou tranquila. Vinte e três são os minutos
previstos até ao Casino. Ele acompanha-me no ombro direito, rebenta
esclarecedor. Tenta dissuadir-me. Deixo-o na praia da Redonda. Para trás, mil e
novecentos metros percorridos e os edifícios que o guardam: o Estádio, o Hotel A-Ver-o-Mar,
o Carvalhido, o Bar com nome de marujo, o Guardador do sol, o Enseada. A zanga
dele não é ciúme por isso a relevo. A preocupação enternece. Avisto o edifício amarelo
esmaecido a encher-se de passos, júbilos e reencontros pela escadaria. Noto
cumplicidades e implicâncias. Depois de dezassete anos são afecto. Anseio
pertencer. Basta-me estar. O auditório silencia-se. Sou fantasma benigno entre
os que nunca darão pela minha presença. O homenageado fala para a audiência de
ouvidos alfabetizados e reverenciadores. Irrequieto avança no palco
gesticulando. Distribui tesouro confiado ao futuro. Passá-lo-emos de leitor em leitor.
Escutei-o com atenção e às palavras ambulantes. Aprendo com ele a paciência. São
necessárias a espera e a frustração. O desnorte. A dor. Sim, a dor imensa.
Pressinto que me avista do palco. Um vislumbre. Intuição. A loucura?
«Te enxergo. Estás aí no
meio da multidão de cadernos pretos de cantos arredondados. Nada te distingue.»
Faltou-lhe rebater a declaração. Ansiava um «contudo» inconcebível. Nada me
diferencia de facto. Posso ser jornalista ou crítica. Mirone, perseguidora, leitora,
desempregada com tempo a sobrar nas palmas. Interesseira. Aduladora. Convicta
de escrever, não acrescento. Componho narrativas imperfeitas quase engraçadas, distantes
de serem «Justas.» Dir-me-ia. Experimentei um piparote no ombro do espectador
defronte. Olhou para trás de viés e como não achou o que o incomodara voltou-se,
de novo, para as palavras do peripatético. Deixei cair a caneta aos pés do
anotador ao lado. Nem se moveu com o peso de uma cabeça no colo. Molhei-o de
desalento. Sacudiu as calças, desconcertado e movimentou-se com vigor adicional.
Motivada e imaginativa questiono-me. Quantos abismos de papel a transpor. Rodeio-me
dos que trabalham, deveras, atribuo à má sorte os fracos resultados. Remeto-me
ao silêncio. Quem me quer ler nas entrelinhas do que omito. Falta-me o quê.
Admito que em data indeterminável secou a tinta desta caneta que estimo sem eu ter
alinhado três parágrafos. Usava-a para tópicos, citações de terceiros e listas
de supermercado: Uma garrafa de vinho branco;
Tostas tradicionais estaladiças; Um queijo Camembert; Um sabonete; Um maço de
tabaco; Preservativos. Comovo-me com caixas coloridas. Compro-as sem lhes dar
uso. Quem deseja copular com a falência. Colecciono canetas inúteis, moleskines-promessa, embalagens de sexo-mais-que-seguro
e reúno ilusões. Erro transparente. Um assobio. A brisa nos dias de calma. Alcanço
na saída a revista oferecida aos fiéis e meto-a debaixo do braço. Imagino-a na
estante no anexo pequeno onde habito, no sótão do n.º 1308 à Ajuda. Finda a
solenidade precipito-me para o exterior. Saltito como as crianças em pulos
elevados e amplos. Passeio alegre na direcção da praia. Leve. Esclarecida. Ele aguarda-me
furioso.
«Por que te submetes?»
«Hum?»
«Por que te preocupa darem
por ti?»
«Ah. Amar é isto mesmo de
te colocares em risco. Dares o peito à seta de quem empunha a besta engatilhada.
Com confiança. Não o farias? A maior
parte das minhas horas são paralisia. Careço da tua intrepidez. Resta-me expressar
na redacção o rebentar das ondas como as tuas. Ondas importantes. Ondas que inundem.»
«Escrever? Combinar
palavras?»
Forma-se coluna vertebral gigante
a meia milha de mim. Levanta-se numa gruta ameaçadora.
«Sabes quantas pessoas se
sentam aí, alheadas como tu? Sonham e a realidade enganadora. Alguns
mergulharam na intenção de não regressarem. Pediram-me que os engolisse.
Concordei. Os delírios pesam. Não te quero devorar. Amo-te. Conseguiria mentir.
Opto por assegurar: És somente um corpo que flutua.»
«Também tu?»
Procuro um restaurante para
almoçar não para fugir da chuva nem pela sede ou pela fome, incomodam pouco, antes
para rever o bloco dos romances porvir. Inquieta-me a esferográfica bordeaux inactiva. As redacções calcadas
no papel, meros lamentos do que pensei. Hei-de reler os sulcos gravados com risível
firmeza. Incómodo. Escrevo para quem. Talvez a tinta seque para me poupar à
incompetência. Deverei desistir de enganar com a verdade.
«Compra uma.»
«Esqueci-me da carteira no
hotel. O dinheiro à recta para a refeição ligeira antes das mesas da tarde.»
«Tens um telemóvel de
última geração e o portátil na mochila. Para quê a obsoleta esferográfica?»
«Obsoleta? É-o o coração? O
cérebro?»
«Excentricidades. Quem
escreve à mão?»
«Eu escrevo.»
«Cala-te. Confessaste-mo: secou
há dias. Anos?»
«Tenho vivido.»
«Este tempo todo? Tens a
certeza?»
«O necessário para passar o
teste do desejo.»
«Desejo?»
«Permito a combustão do
entusiasmo e busco possibilidades nas cinzas.»
«Soa a adiamento.»
«Comprá-la-ei.»
«Acreditarei, assim
declares: Tenho-a.»
Andreia Azevedo Moreira
Novembro-Dezembro de 2015
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