sexta-feira, 18 de março de 2016

«Quebrar a corrente» - VI - Donzília


Filha, neta, bisneta, trineta de pescadores, Donzília jamais olvidou a tragédia passada de boca em boca entre familiares e conterrâneos. Aninhou-se nos seus tímpanos desde a idade de juntar inconsequente consoantes e vogais. Contou-a aos filhos e aos netos. Dos quatro, Luís, o atento, seguiu como ela acrescentando e fazendo sua a desgraça à entrada da barra do 27 de Fevereiro de 1892. Tempestade gravada em todas as almas Poveiras. Mesmo nas ilesas, sem parentes afogados. Perderam-se cento e cinco vidas. O número brutal conhecido. Ritos fúnebres doridos. Lenços negros de desespero. As gaivotas aflitas em bando no céu condenador, ecoavam a dor dos que assistiam na areia nada podendo. As homenagens um pranto multiplicado. Das tragédias familiares a que mais os tocou foi a provação de Manuela.

Poucos recordam a história dessa menina casada com o amor primeiro, António. Durou uma nortada. Naquele Sábado o mar também lho levou. Restou no ventre o feto mirrado pelo desgosto, seco como se não se houvessem amado. Enxugaram as lágrimas e a tristeza renasceu esperança. Manuela viveu de acordo com as marés. Ia a casa pôr os assuntos em ordem para o caso de se dar o milagre. Nas horas de sol sentava-se na areia remendando as redes que alugava aos sobreviventes. As noites em claro passavam melhor porque havia que as encascar e entralhar as artes. Se o oceano plácido lho autorizava, embarcava em jangadas para a apanha do sargaço de ganchorra a postos, secundada pelos moços. Nos dias que sobejavam auxiliava outras mulheres com os barcos no bota-abaixo, pelos paus de sebo. Assim garantia a subsistência perigada pela partida derradeira do seu homem. Na areia ignorava a dormência das pernas, decorridas jornadas na mesma posição. Trazia-as vestidas da malha para a pesca da sardinha. O local da sua expectativa era o ponto onde começava o imenso. Os seus calcanhares fendidos como troncos de árvores antigas eram insensíveis às carícias das águas no Verão. Nas marés cheias de Inverno molhava-se até à cintura. Enregelada permanecia no posto até ao sol-pôr. Tchópa de traços fortes. Sobrancelhas carregadas, nariz redondo, cova no queixo, falatório franco. Mãos calosas de artesã. O lenço claro na cabeça contrastava com o castanho-escuro da melena oculta e com o luto apropriado. Soltava o cabelo para António. Cascatas caíam-lhe nas costas onde ele mergulhava olfacto, desejo, o corpo inteiro. Manuela passou a vestir camisa negra abotoada até ao pescoço e a mesma pobre saia escura rodada desnudava, apenas, pés e tornozelos. Promessa nenhuma. Nunca mais se lhe viu a melena manta. Impressionava a postura magoada da espera de viúva na praia. Os braços prendiam as pernas suporte para o estômago sem préstimo. Como haver digestão em carência tamanha. A garganta estreitada perscrutava o fim do mundo. Almejava a devolução do nobre sustento do corpo e da alma. O impossível. Os anos passaram numa alternância de labor e obcecação. O terço nas mãos postas em descanso. Ao seu lado depositava um cesto com o que António comia com mais gosto. Por mais fome que tivesse a merenda mantinha-se intacta. A pilha de comida decomposta aumentava, a cada crepúsculo, por cima do local onde enterrara a camisola que tricotara para o noivo, perto dos aprestos acomodados no quintal estreito. As traseiras da sua casa na colmeia fediam. O rosto crestado de Manuela quebrou-se caído o último dos trinta e dois dentes. Os olhos, contudo, mantiveram a vivacidade das horas de António quarenta e um anos antes. Terminou o conserto da rede ao cair da noite. Para acertá-la foi necessário, primeiro, abrir buraco maior. Cortou as pontas que atrapalhavam. Então, começou o trabalho paciente. Pegou numa malha com a agulha de madeira e deu dois nós. Um por dentro do outro. Cada nó no seguimento do anterior. Uma recta. Havendo meia malha melhor. Mais dois nós. Um, dois. Por dentro. Voltou atrás. Repetiu o procedimento. Nó com nó. Um, dois. Fechou a falha da rede, deu por findo o dia. Extenuada acolheu nos antebraços as coxas flectidas. Enrolou o dorso. Fechou por segundos os olhos. António veio. A espuma revolta reclamou-a.
Donzília adormece sobre o computador.

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