quarta-feira, 6 de abril de 2016

IX

Escreve-nos.

Obedeço. Aconteceu, passeava pela alargada Junqueira, na senda de uma Livraria. A pesquisa online devolveu nome de Deusa. Avistei um casal. Reformulo. Um homem e uma mulher sem relação dada a distância dos corpos em movimento. A compulsão para lhes perseguir e deturpar os passos foi desencadeada pelo rosto desfeito dela, pelo abandono dos ombros. Os olhos inchados, a boca manchada, o espanto. A finitude estampada no rosto.

«Careces do principal.»

Desiludido constata a continuação da mentira. Somei duas páginas redigidas a branco.

«Servem para quê.»

Impaciente face ao meu incumprimento.

«Estão aqui.» - Grito-lho de regresso à Redonda. - «Leio-tas. Queres ouvir?» - Faço o que posso da prosa.

Gargantas de espuma salpicam-me. Despreza-me.

«Incompetente.»

Inadmissível assumir o fracasso. Vagueio pelas ruas dizendo em voz alta o que vem à cabeça. Rimar é a mnemónica da memória. Hei-de relembrar um por um os contos imateriais. Ele descrê do método. Perco-o. Chegará o momento de me engolir como fez aos meus pares. Sucumbimos na tentativa. Desaparecerei como eles, inábil para o converter à fé que cultivo.

Escreve-me.

Óculos escuros espelhados e baixa estatura, calças de veludo e gola alta. Direi, caxemira. Regra geral, evito avançar se as pupilas ocultas. Será pai Ilustre. Por detrás das lentes defino olhos azuis. Na cabeça caracóis ruivos. Sardas na face, no pescoço, nos braços. Tê-las-á nas pernas, nas costas, na barriga. Cola-se a uma rapariga nova. Ela esquiva-se da abordagem segura. Poeta deprimido. Falho no amor, como na poesia, procurará nos classificados mulheres para leituras em voz alta. Intima as respostas de quem se comova pela mesma via. Família: esposa obesa amarga, desencantada dele e de andar cá. Sai de casa e ela senta-se. Desaparece ela e ele em direcção oposta. Desprovido de ânimo ou capacidade para resoluções. Sobrevive no versejar a ouvidos brandos, a línguas menos afiadas. Línguas que o beijem e o lambam, na vez de o dilacerar. Lábios sugadores que invoquem o melhor dele. Bocas sedentas de vida. Quanto àquela mulher inalcançável, ainda. É ele quem cativa toda a atenção criativa. Mudo-lhe o nome pronunciado ao apresentar-se. A voz aquecida, o corte de cabelo menos certo, a tonalidade contrastando vívida. Disfarce tão competente que me esqueço de quem reescrevo, pronto para existir fora dos limites auto-impostos, das precisões. Será de quem o queira acolher.       

«Mostra-ma.»

Uma embalagem nova de plástico, bem fechada com fita-cola, oferece resistência ao tentar abri-la. Três. Cada uma de sua cor. Invólucros transparentes. Escrita grossa. Encaro-as embevecida e exibo-as. Ergo-as para o calar. Estão escritas.

«Verde, preto, azul.»

«Regista. Agora.»

«Preciso de comprar papel. O caderno preto de cantos arredondados carece de espaço.»

Ecoa a risada cava. Mereço-a. Serei ridícula e ele intransponível. Pereço intimidada pela história.  

Jornalista. Rude. Cáustica. Instintiva. Temperamental. Compõe as madeixas escuras do nervosismo. Sinal em local a determinar no rosto. Apaixona-se por quem revele o mínimo de interesse real ou imaginado. Uma questão, o bastante: «E este frio?» Para entregar as mamas generosas, para ser refém. Coxas opulentas. Negligencia os bondosos. Liga-se aos matreiros, aos dissimulados, aos viciosos. A vulnerabilidade é a defesa orgulhosa. A desilusão demora mais a instalar-se quando se entrega aos isentos de piedade. Morena feia, morena bela. Ela vê: Feia. Outrem vê: bela. O banal dirá: Livre. Liberdade sem préstimo. Ela disfarçará mal a parca vontade que o bem lhe suscita. Desconhece de que fala o ruivo de óculos escuros. Reluta em dar-lhe atenção, inebriada pela espera.

«Ah ah ah ah. Pára, por favor.»

Introvertida e pensadora escreve uma história. Senta-se ao computador. Criadora. Individualista. Silenciosa. Rodeada de estantes com livros. Literatura, Teologia, Ciências, Filosofia, História, Artes, Música, Etnografia, Religião. Mulher pesada de caracóis largos, olhos claros. Colo terno. Mãe de quatro, avó de três, foi divorciada, é viúva. Problemas de visão impedem-na de focar longe e perto. As suas várias amizades não constituem apoio, acostumada a resolver os assuntos por si. Adiou em demasia as aspirações pessoais. Há que recuperar o atraso como pode. Febril. Preocupada. No desespero da morte.

«Isto é o quê?»

Três crianças brincam no chão da divisão clara. Ao lado, na penumbra, uma mão impede a voz de se ouvir. A tensão aumenta na divisão escondida. As crianças escutam ruídos dos quais desconhecem a natureza. Tivessem cães, diriam: cães. Os peixes no aquário não justificam o desassossego. Caem objectos da bancada. Parte-se um copo ou um prato, com estrondo. Talheres tilintam no embate com os azulejos. A queda acompanha a violência dos gestos. Da fome. Paira a dor em cheiros alcalinos e ácidos numa mistura desvairada. As crianças mantêm-se na brincadeira. A curiosidade é inocente.

«Onde vais?»

«Praça dos combatentes.»


 Andreia Azevedo Moreira
Quebrar a corrente - Parte IX





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