Sigo-a desde ontem. Move-me o frémito abaixo da cintura, o
instinto, uma sensação de incompletude. Tardo em desligar-me dela. Escapa-me o
motivo. Haveria gajas mais fáceis. Passei a noite sentado ao frio tendo por
encosto a estátua do Rocha Peixoto, de livro na mão, do lado que me permitia
alguma invisibilidade. Escrevi quarenta e nove poemas de rajada como o poeta
maior. Perfeitos, para ela, sob os candeeiros nocturnos. A manhã custou a passar.
Este frio. Por que há morte a cada enamoramento.
Cansado deste desacerto com as
mulheres. É carnal o que me move. Penso. Haverá mais, porém, foge-me do alcance
o quê e sei que mereço sentir essa chama. Hei-de superar esta satisfação bruta
das necessidades. Quando, caso raro, uma cai nos meus poemas, sem ter de a
forçar, desinteresso-me. Uso-a até estar esgotada. Branda. Entregue. Tornam-se
amorosas. Preocupam-se. Alimento-me bem. Fui à consulta, porquê. De onde vêm as
olheiras. Sugerem-me abandonar a velha para ficar com elas, enfim, para sermos
felizes e eu com ganas de me pirar.
Antes de tudo, rondo-as como um cão.
Assim
estejam vulneráveis desprezo as qualidades atraentes. Impensável abster-me de a
perseguir até tê-la experimentado. Com ou sem consentimento. As gajas são
carros possantes de muitos cavalos, bons vinhos ou camisolas de caxemira.
Servem para dar prazer. Se me sinto incomodado com isso. Pois claro. Escrevo
rimas para a seguinte. As intenções são as melhores. Imploram que pare e nego
clemência, aí habita a inspiração. Vejo-a sair com um gajo. Vai com um péssimo
aspecto. Entraram num táxi. Perco-a, por agora. Aguardarei as Mesas tardias. Um
atraso, um descuido. Ninguém a espera. Vou a casa avisar a velha que cesse os
festejos. Estou vivo. Habitamos um T2, no n.º 153, ao Largo das Dores. Peço uma
francesinha no café de baixo para chegar de estômago forrado ao confronto. Como
chegámos a isto. Para onde vamos. E o amor e tal. Há lá pachorra para a aturar.
Nunca amaste e trolaró. Acrescenta trinta minutos de histeria. Acumulámos trinta
quilos, cada um, os anos, as rugas e o caralho. Transforma-se um sentimento
indefinível, antes puro, numa linda amizade dúbia, nas bocas da multidão
conformada. Com os amigos não se fode. É ou não. É. Incomoda-a que dedique
rimas na rua a outras, ponha para o lado.
Incomoda-me mais a apatia bovina
dela.
O desencanto que me provoca.
Rumina como as que têm quatro estômagos numa
tristeza débil e resignada. Aos dias passa-os a assistir aos programas da
manhã, da tarde, do lusco-fusco. Ranhosa com os dramas alheios. Fazendo-se
boazinha, condoída de dar nojo, marimbando-se para a infelicidade daqueles
palonços. Augura sentir-se bem com gente mais miserável do que ela, do que nós
e é tudo. Malta que vai contar as vergonhas para os écrans, despudorada. Falam das
hipocondrias, dos vícios, dos filhinhos abandonados ou doentes. Das
transfusões, da medula rançosa, dos membros disfuncionais, das dívidas, das
depressões e ela radiante pela ausência de filhos nossos. Rancor que lhe
guardo. Devia tê-la posto a andar. Assim me dissesse «Temos um problema se
queres filhos, eu pelo contrário.» e ala que se faz tarde. Vai à tua vida.
Guardo mundo para dar a um filho ou três. Devia ter procedido assim mas ela, à
data, um doce e eu não me tinha lambuzado o suficiente.
Depois um gajo apega-se
e apaga-se.
É um vê se te avias para despachar aliança, casa, compromissos,
almoços de família, comodismo e afins. Gostava de ter tido outra vida e fiz por
isso. Cada folha na qual arrumo as palavras em sons felizes é nota na minha
pauta. Mulher que subjugue é sinfonia. Se me importa a vaca à espera que eu
entre em casa para gritar com alguém. Mal meti a chave na porta e a voz
esganiçada a entrar por mim adentro. Estúpida. Servil. Reviro-lhe os olhos e
mingua. Muge entredentes. Ódio por ela. Ficasse impune e matava-a. Desadequada
para mim como eu sem ser destino nela. Desconheço a arte de trocar lâmpadas,
renego o berbequim, abomino a jardinagem a que se dedica, como se termos um
jardim estivesse para breve. Trabalhinhos em casa faça-os ela ou contrate
alguém. Tenho mais preocupações do que acudir a domesticidades. Gosto de
combinar palavras. Duas quanto baste para me sentir eufórico. Escapo-lhe ao
entendimento e ela ao meu. Em crise há treze anos. Têm-nos dito: «Acabem com
esse massacre.» O que nos prende. Por que alimentamos o desrespeito.
Acomodámo-nos. Arranjei esta maneira de a violentar sem toque. Rejeitei-a
metódica e repetidamente. No princípio pedia que fizéssemos amor. Humilhava-se.
Nem por piedade. Nela não assento a mão, nem para bater nem para a amar. Em
casa gosto de mudar o sítio aos objectos. Dá-me um gozo do carago vê-la
desnorteada à procura. Altiva evita perguntas. Anda às voltas, pião doido, até
dar com elas ou se resignar a perdê-las. Derrotada, devolvo-lhas noutro sítio. Encontra-as
em dia à frente, sem esperá-las ou delas, entretanto, necessitar. Divirto-me.
Vingo-me da comunicação torta, de a responsabilizar por me ter tornado um
monstro, convicto de que sem o nosso desamor seria bom. Magoo-a intencional.
Pode ser que morra de tristeza ou louca. O pior é que digo uma e ela diz três.
Danos acumulados deste lado. Tratando-se dela, a imunidade tarda.
Abeiro-me das
eleitas na rua e esqueço as palavras duras que trocamos. As ditas e as veladas.
Foco-me na boca que preencho erecto, nas mamas magoadas pela sofreguidão, nas
ancas robustas escolhidas, com critério, pensando na força investida nelas, nos
membros superiores inúteis, à conta do fio de nylon nos pulsos que sangram se
resistem demasiado, nos olhos apavorados e estimulantes. Gravo nelas a
frustração dos anos perdidos a morrer ao lado desta, sendo afável para os
outros.
«Metido consigo. Zero defeitos a apontar-lhe.»
Regra geral, as parvas
fazem queixa mal as liberto. Esbaforidas partem das traseiras onde as desgraço.
Rio-me alto enquanto correm, tarde demais. Fumo um cigarro. Subo as calças,
aperto o cinto. Ouço as botas no alcatrão. Nada me liga à empresa de
exportações ou àquele ermo. Entregam esperançosas às autoridades cartões vários
com os meus versos. Deixo-lhos entalados no rabo.
Servem de prova que usei um
nome falso.
Andreia Azevedo Moreira
Novembro a Dezembro de 2015
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