segunda-feira, 2 de maio de 2016

Parte XV - Baixa-mar; 23h09; 0.89m

Toda a evasiva é exterior. Daí ter resolvido regressar. A estadia paga até domingo. Os miúdos encaminhados com o Ricardo, lá em baixo. Fico. Disse “Não”. Engraçado que bater com a porta, para mim, equivalha a levar com a dita com estrondo. No caminho renegado sinto a dor do desfecho como se tivesse sido E. a promovê-lo. Passei a tarde a dormir. O surto desta manhã um pesadelo remoto. Dormi pesada em cima do colchão estranho. Tive sorte de a bibliotecária me ter proibido, apenas, de repetir a graça. Grata. Estes dias são o oásis do meu quotidiano. Sede de me isolar. A literatura é o pretexto para que os meus aceitem ausência prolongada. Procuro a solidão obstinada, tanto quanto os que anseiam companhia buscam alguém que os resolva. Passo bem sem pessoas. Seria desgosto se lhes causasse a dor de uma descoberta destas. Assisto horrorizada quando acções de que sou responsável lhes desenham tristeza nas testas pequeninas. Atormenta-me o pavor de lhes destruir o futuro, de lhes dar cabo da auto-estima, de os estilhaçar impedindo-os de construírem relações saudáveis. A responsabilidade de criar três crianças é avassaladora. Fazer o quê com elas se desconheço o que fazer comigo. Vêem-me alta, santa, como se soubesse imenso e é falso. As memórias que construímos sobre a convivência primeira são as mais destrutivas. Quero fugir. Acordo com esta ideia. Domestico-a. Imperdoável a mãe que abandona. Cinco dias em trezentos e sessenta e cinco em que me finjo só. Ninguém à espera para eu cuidar ou para me idealizar. Ninguém aguarda um pingo de chuva num dilúvio, nem se angustia com um mosquito contra a velocidade do pára-brisas. Sou vento, graças a Deus. Ninguém dá por mim . Invisível. Vou às Correntes. O resto do ano é vosso. Ajo mecânica. Abarco atabalhoada os papéis destinados. Robot da vida moderna. Encurralada entre a família, os pensamentos, acções e omissões, clandestinidades e a cura. Nunca me diagnosticaram asma, ansiedade ou outra desordem quer fisiológica, quer mental e, no entanto, uma falta de ar persistente acompanhada de um hálito fétido. Ando com a bomba. É-me tão característica como pesar sessenta quilos, medir um metro e setenta e quatro, ter cortado o cabelo curto na adolescência e manter o corte inalterado por décadas, a franja, um sinal que detesto no queixo e uma apetência estúpida para me apaixonar. Isto estará explicado nos anais de psicologia. O meu paizinho, isto, a minha mãezinha, aquilo. Acredito que esteja e não quero saber. O presente é responsabilidade do próprio. As mudanças operadas foram subtis. No início, era feliz ou convicta de o ser. Passados alguns anos, algo insatisfeita, atribuí-o a indisposição passageira. Comecei a acumular o descontentamento nos ossos capaz de me afirmar bem. Protegia a imagem. Era o momento de pretender, somente, convencê-los. Miserável já não disfarçava fora nem dentro. Na dor declarada descuido o valor atribuído ao que pensam das minhas atitudes. A infelicidade é o esqueleto que sustém. Dificílimo sair disto. Nego os argumentos que impulsionem a mínima mudança. O logro começou anos antes de o poder admitir, quanto mais verbalizar. Gostaria de experimentar vidas diversas da escolhida. Uma é insuficiente. Daí que a fachada incompleta na Rocha Peixoto me tenha sugerido um conto sobre o portal que nos permitiria ensaiar a vida. Anotei os tópicos principais do enredo. Pela fresca, com os primeiros indícios da manhã, trabalho-o. Perseguir inúmeros trilhos sem prejudicar. Experimentação e regresso. Experimentação e regresso. Experimentação e regresso. A trama foi mais bem escrita por um grande escritor séculos antes de mim, todavia, ignorante relativamente ao que quero. Assim, causas próprias as mesmas mãos no teclado. De facto, ninguém me forçou. Tomei decisões. Precipitei-as, inclusive. Crente de que o amor é companhia sem estar certa, sequer, da sua existência. Este, a estar desacompanhada, é o quê? Deve ser o egoísmo. Talvez tenha nascido defeituosa. Imaginei a maternidade altruísta, feita de renúncia alegre. Mulheres com este instinto exacerbado para serem outras, além de cuidadoras de lares e de filhos, falham nas competências, no preenchimento do teste psicotécnico tácito dos que estabelecem como é ser-se boa mãe. Não me chateiem, não me façam pedidos a cada três, vírgula, nove segundos e para ontem, deixem-me na casa de banho sozinha, são três minutos, pouco mais. Cinco não vos fazendo mossa. Parem de me chamar em simultâneo, de gritarem matérias importantíssimas as quais devo considerar de igual modo, no exacto momento em que as proferem, parem de competir pela atenção, pelo afecto, como se o meu bem-querer fosse uma coisa pequenina que partilhada perdesse significado. Não respondo a perguntas que me obriguem a distinguir quem amo. Grito. Grito mais do que queria e odeio gritar. É contra a minha natureza impor-me. Ver-me sozinha longe de reclamações é o que quero com ardor. Serei mãe. Saturada das birras, berros, ralhetes, da negativa, de lutar com a resistência deles, das ladainhas insatisfeitas, de me ver malvada a cada instante, em erro, a desiludir, a magoar, a exceder-me nociva. Estou farta. Exausta. Em extinção. Agiganto é certo, porém, não diminuo o que me apetece. Desaparecer. Então, neste mês redentor, guardo numa pequena mala três camisolas quentes, calças de ganga, meias e cuecas, botas para a chuva, livros, revistas, o meu caderno azul, o estojo de grafites, o computador portátil e meto-me num comboio para o Norte. As férias tiradas da biografia começam pelas quatro e meia da manhã. Desço as escadas silenciosas do Lote 11. Aguarda-me o Sérgio, amigo da família, em quem confio para me levar em segurança de madrugada. Vamos numa conversa boa até Santa Apolónia. Na estação gelada verifico a linha de onde parte o alfa-pendular das seis. Sigo para a plataforma e instalo-me no assento escolhido com quinze dias de antecedência, para usufruto da promoção. Entretenho-me a observar os passageiros ao redor. Desenho a maioria, escrevo poucos. Conjecturo um bocado sobre as suas vidas e, quando me aborreço, dedico-me à leitura. É raro adormecer. No hotel pelas dez estico-me na cama indolente. Aprecio a imobilidade, vejo o que me apetece na televisão, leio, faço o que me dá na bolha. Vingo-me. Serei propriedade de quem. Pergunto porque nas falanges escuto culpa. Levanta-te. Põe-te em sentido, Mãe. Os que te avaliam têm tabelas com os parâmetros que incumpres, em rigor, todos os dias, Mãe. Comporta-te, Mãe. Aspirações-extra a que propósito, Mãe. Há lá melhor. O que fazes estendida, Mãe. É árduo, sim, mas o sorriso deles compensa. É, Mãe? Os sorrisos deles são a expressão da sua generosidade perante a vida, reconfortantes, sim, mas não são tudo e, sobretudo, não são meus. São deles. Sinto falta de mim, do ar limpo e a médica de família nega-mo. Serei doida. Por que não me bastam. Por que não me rendo. Nado no mesmo sítio há tanto tempo. Afogamento previsto para uma noite de desânimo pelas 23h09. Como é que ela se afogou com água pela cintura. «Não pediram para vir.» A avó. «Tens de brincar com eles.» O avô. «Descontrai.» O marido. «Desorientada.» Eu. Avisto o Grande Hotel no seu tom vívido. Renasço. É o princípio do desprendimento. Corro. Possibilidades imensas. Desconforto nenhum.

Paz.




Andreia Azevedo Moreira
De 3 de Novembro a 28 de Dezembro de 2015

OBRIGADA POR ME LERES.









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