Santo André resgatou-me à fundura. Acordo
a flutuar. Quanto durou o afogamento. Ao redor centenas de páginas nadam a
profundidades diversas. Amparam-me. São as que criei. Distingui-las-ia em
qualquer meio. Letras de todas as cores vão surgindo como fotografias
reveladas em câmara escura. O papel indestrutível. As histórias, os lugares, os
compassos, as personagens vieram em meu socorro. Puxam-me, pelas axilas, para fora.
Pousam-me com cuidado numa pana, embora seja certo darem-me como acabada com a
visão turva e as cordas vocais enfeitiçadas, som nenhum. Ouvem-se diversas
pronúncias do português em conversas encantatórias. Num repente de convulsão
expulso água dos pulmões. Posso assegurar ter recebido um beijo de vida,
instantes antes. A reduzida área, entre bancos, está atulhada de redes com
livros, papéis, esferográficas, blocos, folhas soltas, dois computadores,
papiros, penas, tinteiros, mata-borrões, uma Olympia, maços de tabaco de marcas
desconhecidas, as caixas coloridas de algumas das colecções doentias. Tiveram
de arranjar espaço para me acomodar além da estranha pescaria, entre os pés dos
tripulantes da lancha sobrelotada. À medida que os olhos se habituam à luz vou
descortinando os rostos que me rodeiam. Mortos, todavia, vivos. Integramos
frota de embarcações diferentes em tamanho e feitio. Alguém confirma «Navegamos
à bolina». Os remos ainda estão recolhidos. Ao bombordo, incontáveis
velas-trapézio rogam a Deus inclinadas na sua fé desmedida. Lotação esgotada,
igualmente. Levanto-me e reconheço mais gente que venero. A boreste, barcos a
perder de vista no limite da capacidade. A ondulação faz-me temer o
desequilíbrio e o naufrágio. Perdi o impulso de me matar. Recupero, aos poucos,
o fôlego de que desistira. Quando me constatam viva, todavia, morta,
congratulam-se. «Bem-vinda a bordo. Permaneces se remares.» Lêem-se histórias
dos séculos antepassados. Relembro algumas, surpreendem-me as desconhecidas.
Recrimino-me por estar tão atrasada nas leituras essenciais. Sentámo-nos de
frente uns para os outros. Ti’Maio concentrado ouve-nos. Garante que navegamos
seguros nesta lancha. Indelével.
Ao longe, luz. A Lapa reacendeu-se para
nós. Será difícil. O farol avisa-nos das condições adversas à entrada da barra.
Tomo o meu posto como se soubesse exactamente o que fazer na navegação. Foco-me
nas pinturas mágicas dos cascos que a vista alcança. Creio nas suas bênçãos
para nos fazer aportar. As conhecenças serenam-me. Serei capaz. Por companhia
os tripulantes mais competentes da história da humanidade e um patrão bravo ao
leme. Por debaixo de nós as vagas aumentam súbitas e assustadoras. Ele fala
comigo depois deste período em que o desconsiderei.
«Fica.»
«Indo onde tenho de ir.»
«Isso significa o quê?»
«Preciso de chegar para reconhecer a rota.
O quanto remei.»
«Chegar?»
«Sabes o que quero dizer. Chegar.»
«Persigo-te como um cão raivoso.»
«Perdi o receio.»
«Decides afrontar-me.»
«Sem dúvida.»
«Arriscas.»
«Sim.»
«Antes de ti muitos falharam ou
desistiram.»
«Já mo disseste. Vou.»
Encapela-se. As lanchas bailam o
descontrolo imposto pela sua indignação, ameaçam tombar, render-se à água
invasora. Desceu a noite antes da hora e uma neblina espessa engole-nos, vinda
do interior. Deixamos de ver os pontos que nos asseguravam estarmos perto de
poder deixá-lo. Só a intuição pode valer-nos. O vento é afinal seu cúmplice na
refrega. Os patrões gritam-nos incitamentos, calma e as orientações possíveis.
«Reduzir o pano nos quatro rizes.» Dobramo-nos combativos sobre os remos aos
quais nos amarrámos. Contamos com a força maior que levamos dentro. Impassíveis
perante o sangue que preenche as linhas das palmas guerreando. Tememos morrer
pelo esquecimento e que tenha sido vão o nosso esforço para permanecer, acerca
de nós, uma evidência. Somos iguais, temos medo. «P’ra barlavento.» Que a
velocidade boieira nos guarde e leve rápido a bom porto. Aguardamos vigilantes,
antes da barra, por todos os barcos ainda em perigo. A solidariedade é
redentora. A compaixão salva. Apesar da desorientação que a tempestade nos
inflige, remamos em absoluta sincronia. Sabemo-lo: A noite estrelada é bela mas
a estrela solitária não enleva. Dois camaradas ajudam José Rodrigues com o
governo da lancha. «Agôra.» Entramos na barra. Na praia uma multidão
organiza-se lesta, aguarda a oportunidade de se atirar ao mar e caçar os estais
para varar os barcos para terra. Acolher-nos-ão após a tormenta na enseada.
Sophia, Florbela, Luísa, Irene, Sara,
Fiama, Maria, Gabriela, Ana, Madalena, Cecília, Filipa, Ângela, Teresa,
Violante, Helena, Mariana, Judith, Judite, Branca, Luiza, Natália, Leonor,
Jacinta, Ilse, Catarina, Mécia, Guiomar, Joana, Amália, Alice, Dóris, Rosa,
Carlota, Matilde, Francisca, Bernarda, Inácia, Brígida, Antónia, Constança,
Teodosia, Aurora, Tomásia, Brites, Isabel, Beatriz, Umbelina, Margarida,
Adriana, Agostinha, Bárbara, Eugénia, Ivo, Caetano, António, Raúl, João,
Flávio, Francisco, David, Jorge, Dinis, Carlos, Vitorino, Manuel, Miguel,
Vergílio, Júlio, Fernando, Diogo, Duarte, Augusto, Camilo, Campos, Adolfo,
Mário, Armando, Abel, José, Alfredo, Gil, Luís, Luiz, Leonardo, George, Emídio,
Albino, Fernão, Agostinho, Pedro, Guilherme, Nicolau, Alexandre, Joaquim,
Henrique, Jacinto, Alberto, Jaime, Álvaro, Herberto, Eduardo, Romeu, Ruy,
Eugénio.
Reuniram-se infindos na salvação.
Saltamos para terra firme. Os nossos
ombros aliviam o peso do barco agitando-o pelos lados, enquanto a irmandade
puxa a lancha com alento conciliado. As pernas são tesouras vencendo a areia
além do próprio eixo. Alguns correm da ré para a proa com os paus de sebo
recém-libertados para os recolocarem por debaixo do casco, mais acima. As
expressões denotam o contentamento de vencerem as dificuldades. O barco move-se
lento, metro a metro, conquistado ao mar, galgando a duna sobre dorsos obstinados.
Somos voz em uníssono. «Força, para cima! Força, para cima!»
Andreia Azevedo Moreira
03 de Novembro a 28 de Dezembro de 2015
OBRIGADA POR ME LERES.
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