sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

UMA PARTE ERRADA DE MIM - PAULO M. MORAIS

Escrevo estas linhas ao som de Metamorphosis de Philip Glass, referência musical passada pelo Paulo M. Morais, numa troca de ideias no FB. Agradeci-lhe, à data, a referência que me remeteu para a viagem bela que o álbum convoca. Tento, agora, agradecer este livro, se é que é possível, perante tamanha generosidade. Metamorfose foi, também, o que ele me propôs ao longo das 310 páginas de “Uma parte errada de mim”. (Sim, incluo a página de agradecimentos finais no conteúdo do volume.) Dizem que Valery afirmou: «um poema nunca está acabado, somente abandonado». Se desejo que, para o Paulo, este livro tenha sido o folhear derradeiro do capítulo «Cancro», também tenho certo que o mesmo é tratamento de choque para cada um dos leitores afortunados que a ele cheguem. Doentes do corpo, da alma, de ambos, ou inconscientes da própria morte, prematura, em vida. 

«Uma parte errada de mim» chegou-me no tempo certo. Atendi ao seu apelo, curiosa, um pouco apreensiva quanto ao que me esperava. Gostaria de o ler neste registo, seria capaz de o fazer, até ao fim? 

Acompanhei os oito ciclos de quimioterapia, magoada pelas descrições cruas, que não poupam à violência do diagnóstico, dos primeiros pensamentos, do duro trilho da quimioterapia a seguir, do pânico da perda maior. Foram inúmeros os momentos em que não contive as lágrimas no comboio e não me preocupei em disfarçá-las. Chorei de tristeza, de angústia, de alegria, de ternura, com medo. À medida que li o líquido alaranjado a entrar nas veias do Paulo, fazendo o seu percurso abrasivo, numa tentativa científica de dizimar as células erradas que o ameaçavam, fui sendo, eu que me julgava saudável, igualmente curada. Às vezes é um cancro o que nos mata silencioso, outras, uma pessoa que nos quer mal. 

A realidade é que, por muito negra que a situação se preveja, há sempre escapatória. Quanto mais não seja pela libertação dos pensamentos que nos empurram para o abismo, que nos tornam amorfos, que impelem à desistência. As palavras do Paulo iluminam a esperança que alguns trazem, amiúde e injustamente, adormecida. 

 Os exemplos dos seus conflitos interiores apaziguam. O despojamento com que se nos dá a conhecer na sua timidez, complexidade, solidão, tristeza, melancolia, frustrações, nos seus amores e desamores, encontros e desacertos, ele que sempre soube melhor como afastar as pessoas, na vez de trazê-las para perto (Sei porque no-lo confessa lá dentro.), tem, precisamente, o efeito de nos aproximar.
Reconheci-me nele, apesar de todas as diferenças que tenhamos. Coloquei-me no seu lugar e repeti, a seu lado, este passeio aterrador pelo bosque de um linfoma que ele acolheu como ao lobo desenhado num túnel, por onde passava, rumo ao hospital. Trajecto que quis percorrer, sempre que pôde, pelos próprios pés, contrariando o susto, o horror à morte, a vontade de baixar os braços que uma pessoa, diante de um inimigo, poderia adoptar resignada, acabando antes de dar luta.


(Também me demonstrou como o cancro pode ser encarado como parte integrante, passível de aceitação, em vez de ser o elemento hostil que se renega, alheio.) 

Enquanto caminhamos, vai-nos contando sobre todos os prazeres da sua vida, percebemos que desvalorizarmos o que já temos é o que nos perde, que ansiar sem freio, pelo que pode nunca chegar, mata mais do que células a multiplicarem-se desobedientes em nós. Livros para ler. Canções para escutar. Filmes para ver. Ensinamentos a interiorizar. Convívios com pessoas queridas. Reatar de ligações que, na verdade, nunca se quebraram. O amor que acaba. As amizades que esfriam. Deixar partir quem não nos pertence. O amor maior a quem nos criou. O amor a uma filha que se queria poupar ao sofrimento. Um amor que começa. Abraços. Afectos. Desejo. Sexo. Demonstrações de gratidão para com os que nos cruzam o destino, enriquecendo-o. Dando força. Desafiando. Há tanto na vida vivida simples. 

(Obrigada, Paulo, por mo relembrares.)

Gratidão imensa por me assegurares que os erros pertencem-nos tanto, quanto as coisas bem-feitas. As injustiças, o egoísmo, também nos compõem. Não há que ter vergonha, não há que omiti-los. Há que os acolher como à doença maligna, como partes que também somos. Quem nos amar que o faça por inteiro. Que nos aceite despidos de muralhas fingidoras. 

 Este livro não é literatura, é a vida em si. Ainda bem que ele o escreveu. Tal como o próprio admite e eu subscrevo, não há uma sem a outra.

Escritor altruísta, pura expectativa de ajudar. Podia ter escrito outro que o levasse mais longe, que lhe rendesse mais elogios, maior visibilidade no meio literário, vendas mais proveitosas. 

Escolheu escrever este. Optou por dar tempo precioso (ele que conhece, melhor do que muitos, o seu valor) a passar o testemunho, a falar a quem possa precisar dele. Dádiva. Coragem. Conheço raras pessoas capazes de se mostrarem, sem roupagem, desta maneira. 

Eis um homem com tudo o que um homem pode ser, a escrever as suas partes erradas para que nós, leitores, possamos atalhar o nosso caminho na procura das certas. 

Obrigada, Paulo, por este livro cheio de Vida e de Amor.


És enorme.

(Que esteja para breve o nosso abraço.)

Uma tua leitora.

Para sempre.


Nota final: Quem mo vendeu? O Joaquim Gonçalves das A-das-Artes, pois claro. Sem portes de envio (em Pt). De Sines, para Carcavelos e para o mundo!




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OBRIGADA POR ME LERES.