terça-feira, 15 de agosto de 2017

A GORDA de Isabela Figueiredo


Disse-me, certa vez, uma amiga: «Não te encares como a uma coisa estragada». Sou Maria Luísa. Vejo-me a custo no espelho do elevador, único que não posso evitar, com ela. Como ela. Estragadas, indignas da admiração alheia, do amor reservado apenas aos eleitos. Não obstante, eis a maior fé de todas, a alimentada a amor, a crença nos outros, ainda que nos tenham ensinado a desconfiar. Confiança em alguém que nos desse a mão nisto de «sermos quem viemos ser». Esta voz, poderosíssima, arrastou-me pelos cabelos. Andei de rojo enquanto não se calou. Dores no corpo, na alma, no passado. Fui visita de sua casa e, tal como recordo à minha mãe com os nossos convidados, apresentou-me às divisões da casa da margem-sul, herdada dos seus pais. Também ela viva, pulsante, guardadora de memórias, de outras vozes, outros corpos. O percurso asfixiante entre paredes é, em simultâneo, rumo à liberdade. É essencial essa libertação das recordações doloridas, do jugo dos julgamentos alheios, das vidas que os outros aceitaram e tentaram impingir, para que se torne habitável pela mulher cada vez mais próxima de si mesma. Voltei atrás no percurso. Por graça, procurei as relações entre as divisões e as narrativas. A porta de entrada, o presente. O culminar de um percurso longo. Uma decisão definitiva. O quarto de solteira contou-me sobre David, um amor desmedido, incontornável e ainda sobre Tony, uma amizade profundamente desigual que só se aceita a termo incerto. Na sala de estar senti o peso das gerações anteriores, dos seus dogmas, padecimentos, da castração, dos desencontros inevitáveis entre mentes que se limitaram e esta, que anseia voar. Revivem-se as histórias dos pais no quarto que foi seu. A fome, monstro de muitas faces, na cozinha. A fome não se cala, toma conta de tudo, tem o tamanho de todas as ausências que nos consomem. Na sala de jantar, divisão fechada em tantas casas, aguardando gente que não chega, deparei-me com a generosidade. Comovente. Grandiosa. Mas também com a violência, a imposição, as mentiras. Na casa de banho, a vergonha. O desacerto. A maternidade. A crueldade dos paradigmas. Um livro feito de contradições tal como o somos. Contrapõe diferentes modos de olhar a existência, ainda que quem no-lo relate seja sempre Maria Luísa. Claro está que isto é só um lusco-fusco. Rico em pessoas, vivências, em pensamento, este é um romance imperdível. Encontro-me no Hall das paredes que me engoliram durante seis dias. Antevejo para Maria Luísa o gozo da liberdade por que lutou durante anos e também as alegrias que merece. Mulher admirável. Talvez tenha saído de casa sem que me desse conta. Foi-se à vida. É, enfim, quem veio ser. Continuo cativa do que li e cheia de esperança.


Obrigada, Isabela Figueiredo.
P.S. Comprado na A-das-Artes, Livraria de Sines. Sem portes de envio. Pela mão do Livreiro Joaquim Gonçalves.


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OBRIGADA POR ME LERES.