sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A vinte e quatro minutos da eternidade


A mulher viaja de pé no comboio. Empunha o telemóvel. Permite que ocupem os assentos defronte, absorta nas palavras que profere. Sentados arrependem-se tarde. O discurso é escorreito, a dicção irrepreensível, todavia, os temas repetem-se obsessivos, repetitivos. Agressores. Há pessoas a rirem ao lado das incomodadas. Ninguém a interpela. Quanta solidão terá amontoado no peito para discorrer ilusões aos ouvidos de gente que não lhe quer bem. Testemunho a cena. Ouço as queixas e as questões veladas de passageiros, entre a piedade e a impotência. Comparo-me aos restantes, espectador da miséria alheia. Atitude nenhuma em seu favor. Na carruagem, dez usam o indicador ou o polegar, conforme o jeito, ao deslizarem o ecrã, queixo colado ao pescoço, costas esquecidas da rectidão. Quatro deles, de pé, ensaiam um equilíbrio precário, mais preocupados com o visor do que com a própria segurança. Sete lêem os seus volumes que variam entre o policial, o esotérico e o filosófico. Cinco dormem de pálpebras caídas, quatro mantêm os olhos mortiços entreabertos. O timbre da alienada é elevado, quanto baste. Sobrepõe-se ao barulho da máquina e das composições deslizando. Passamos por vidas descarriladas sem nos importarmos. Pode compreender-se à distância, mas esta mulher pede ajuda perto como consegue e habituamo-nos à sua presença, como se se tratasse de nos adaptarmos a condições meteorológicas adversas. Não se fazem casacos para este tipo de frio, a indiferença.
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Ontem perorou sobre o ramo imobiliário. Descreveu com um detalhe aterrador um casarão às Janelas Verdes. Entremeava a dissertação com perguntas, se do outro lado estariam bem, se teriam visto fulano de tal e acusações disfarçadas sobre falhas a colmatar que não se conjugavam, de modo algum, com a descrição de azulejos, mobílias e varandas de ferro. Esta manhã, impinge-nos uma visita a um sanatório com descrições pavorosas sobre doenças pulmonares. Detecto uma senhora na iminência de devolver o pequeno-almoço. Em dia porvir sobre o que versará a elocução febril. Um casal de namorados partilha a música. Pelas suas expressões percebo o alívio de um dos ouvidos se manter ocupado com canções leves, livres de se inquietarem com as consciências. Trocamos sorrisos de cúmplice constrangimento. Que loucura é maior. A do louco, ou a do são que o desconsidera. Andamos demasiado ocupados para nos deixarmos afectar por catástrofes exteriores. Contamos com a aleatoriedade da existência para que nos não calhe em sorte a fragilidade. Decido: mudarei de horário. Fujo do confronto com a inércia. Recordo a senhora que me pediu ajuda, na véspera. Precisava de comprar o bilhete na máquina, recusei delicado conceder-lhe esse tempo, alegando a aproximação do comboio das sete e quarenta e um. Ainda a olhei carregada a descer as escadas em direcção à bilheteira, com a sua mala de dois dias de ausência, sossegado por não ter intuído a desilusão nos seus olhos. Compreendeu a pressa, sem julgamento. Adiei, pois, a sentença.
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Acordei desmemoriado face à decisão. De novo o clamor. Com estrangeirismos irónicos apresenta os sujeitos alvos do diálogo actual. Quem acreditará que em linha haja alguém com tamanha paciência. Pelo menos eu, não acredito. O telefone é o pretexto do monólogo gritado sem que a interrompam, ou afastem com receio. É a ligação ao exterior. O bocal despista o facto de se dirigir a todos com quem se depara, embora estes optem por fingir que nada de extraordinário acontece no seu trajecto rumo ao trabalho, à faculdade, a um encontro romântico. Afinal, ela não corresponde à loucura concebida. Desgrenhada, suja, frenética. A sua voz é segura, os movimentos ponderados, a roupa impecável. Houve cuidado consigo, antes de se apresentar ao mundo. A ladainha ininterrupta. Parecendo que não, vinte e quatro minutos podem ser a eternidade. O tempo suspende nos corações de quem se deixa perturbar pelo susto de o mesmo suceder consigo. Ouvem-se as irregularidades dos carris com outra atenção. Pouca-terra. Quanto mais nos concentramos nelas, na tentativa de a enxotar do pensamento, mais nos denunciamos. Pouca-terra. Risos, enfado, desprezo, olhares enviesados. Pouca-terra. Ela impassível às reacções, indignadíssima a contar sobre um indivíduo que não chorara a morte da mãe e sobre aqueloutro esquecido pela família, encerrado no quarto, em dias sucessivos de agonia até ao estertor. «Ah, tens de desligar? Está bem. Beijinhos, beijinhos.» Do destinatário, nenhum indício. Ela desdenha a despedida, prolongando a chamada, quando um homem corpulento e de aspecto grosseiro toca leve no ombro encolhido, amparando o dispositivo. Emoldurado em preconceitos, ponderei a hipótese de pretender com o seu gesto intimidá-la ao ponto do silêncio. Ela, sem vestígios de desorientação. «Dá-me um minuto. Já te ligo.» Predispôs-se a dar ouvidos ao gigante com olhos sorridentes e boca interrogativa. «Sim?» Passos discretos aproximaram-me dos dois. Bendita a hora em que faltou lugar. Antecipei com gozo pérfido o confronto brutal. Todavia, apresentou-se. «Alexandre.» Obteve pronta resposta «Fides. Muito prazer. Os meus pais eram estudiosos da mitologia.» Esclareceu, antes de a estranheza do par e da nossa, que seguíamos os desenvolvimentos menos negligentes do que antes, se revelar. A bisbilhotice reúne adeptos mais fervorosos do que a solidariedade.
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A conversa desenrolou-se fluida e envolvente. Estranhei a divergência drástica de comportamento. Há pouco, relatos massacrantes em voz projectada. Agora, uma mulher com nome de deusa diria enigmática, a quem gostaria de conhecer intimamente. Envergonhei-me. Reduzira a pessoa à única conduta conhecida. Definimos, limitamos. Classifiquei-a inapta, um estorvo no quotidiano pacífico. Alexandre soube procurá-la nas entrelinhas. Somos livros nas estantes dos outros. Aguardamos uma oportunidade, aquela vez em que decidam ir além da lombada exposta. É vital, nesta viagem a que chamamos vida, que alguém nos queira ler. Pensei nisto enquanto os vi a enunciarem os números de telefone, referências musicais, literárias e televisivas. Anotei, mentalmente, algumas. Invejei a ingenuidade de se darem a conhecer um ao outro, espontâneos.
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Recordo, com gratidão, certo amigo. Não o procuro há meses. Atemorizo-me com a possibilidade de se terem transmutado em anos de afastamento consentido. Incapaz de recuperar a última vez, ouço ofegante a cadência do sinal. Atende. Despudorado exclamo estridente a saudade. Reparo no sobressalto da senhora que empunha o diário gratuito. Ergue-o ao nível do rosto, defendendo-se da alegria. Prossigo as demonstrações de afecto sem temor ao escrutínio alheio. Agendamos o reencontro. São oito horas. Em cinco minutos terei de me calar. Juntar-me-ei ao rebanho, aos tropeções, que descerá as escadas do metropolitano sem sorrir, olhar o vizinho, ou abrandar o ritmo arranjando tempo para se questionar se vai aonde deseja.
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«Fim.»
«Lê outro, Clarice!»
«Mais logo… É meia-noite!»

Andreia Azevedo Moreira
Outubro de 2017

Dedicado a Ana Paula Carvalho.


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