segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

OS CORPOS - RODRIGO MAGALHÃES

É preciso dizer em minha defesa que não senti este livro como desejava. Li-o, contra a minha natureza, no formato digital. Para se ler um corpo é preciso tocá-lo. Assim o são igualmente os livros. Em todo o caso falo dele porque, à semelhança de outros que considero bons, me perturbou. Desengane-se quem pensar que a escrita burilada ao detalhe simplifica. Custou-me entrar neste volume. Andei perdida nas primeiras páginas, procurando referências que norteassem a leitura. Irritei-me com as vozes múltiplas. Eis que me captou a atenção em momento indefinido. Julguei-me, enfim, apta a descortinar a(s) trama(s) oculta(s), forçando-as a relacionarem-se, a se enlearem numa qualquer lógica comum. Avancei ávida apenas para me descobrir ainda enganada. «Os corpos» não estão aí para nos facilitarem a vida leitora e não será essa a melhor literatura? Aquela que na vez de nos servir, solícita, respostas, presenteia com questões e perspectivas que nos levem a pensar muito depois da última página lida.

Um homem sem identificação foi encontrado morto, numa praia Australiana em 1948. Apesar de terem conseguido mapear alguns dos últimos passos dessa pessoa, não chegaram à sua identidade tendo sido o corpo embalsamado numa decisão inédita das entidades competentes. Dentro de um bolso interno das suas calças havia uma referência literária (Rubaiyat, de Omar Khayyam). Foi ao apelo deste caso insólito e verídico que o escritor não conseguiu resistir, dadas as inúmeras possibilidades que o mesmo lhe terá sugerido. Escolheu a inevitabilidade que liga os seres pensantes, a morte, como ponto de partida para uma narrativa fragmentada que estende os seus tentáculos em diferentes direcções que ora se cruzam, ora se apartam, ora seguem paralelas. Uma escrita a implicar princípios, meios e finais baralhando-os, sem que haja uma linha narrativa a direito, como a direito não é a nossa vida.

O que ainda ressoa. As inúmeras imagens nascidas no decorrer da leitura, quais instantâneos de um filme que não se esquece. As interpelações de determinados capítulos. A incredulidade ante a narrativa, como quando confrontada com o fim de alguém amado ou conhecido. O piloto-automático de muitas existências. A proximidade da primeira pessoa do singular e o distanciamento de um narrador indefinido. O jogo de um escritor que se revela para continuar iludindo. As coincidências que o são tão-só. E os acontecimentos simultâneos que inspiram a crença numa qualquer relação superior para tudo o que acontece, umas vezes sádica, outras tantas terna. O desafio de me achar incompetente para entender inteiramente o que tinha em mãos, que é como quem diz o incómodo de sentir a sagacidade a falhar-me.

O índice vem no fim. Só depois de morrermos poderá alguém tentar uma espécie de ordenação. Na capa, um vislumbre porvir.

Tal como o autor, gosto muito da palavra não. Não deixem de ler. Será, seguramente, uma experiência de leitura diferente.



P.S. Ora, que livro já recebi do Joaquim Gonçalves (A-das-Artes, Sines), perguntam vocês doidos de curiosidade. O primeiro, «Cinerama Peruana», pois, o qual lerei como deve ser, em papel. Coisas virtuais? Belheque, para citar Ana Rute.

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