segunda-feira, 5 de agosto de 2019

HANDMAID'S TALE

Por que «Handmaid’s tale» vicia uma pessoa na senda de ser livre quando começa com a asfixia absoluta (que se prolonga pela primeira série quase toda), onde tudo é treva, nojo e interditos? Pela mestria com que vai demonstrando, episódio a episódio, que a liberdade é maior do que qualquer movimento fundamentalista e a rebelião inevitável. Mesmo uma sociedade altamente opressiva, que infunda o medo das maneiras mais atrozes, haverá de cair às mãos dos que tendo medo, como os restantes, se vão reagrupando, organizando e escolhem arriscar a vida por todos, pelo regresso da esperança. Esta é uma sociedade distópica (dizem as sinopses) de um romance escrito pela Margaret Atwood e adaptada para série, onde tudo a que assistimos existiu ou existe ainda. Atrocidades como: cortar partes do corpo como punição para atitudes condenáveis pela lei vigente; enforcamentos públicos; apedrejamentos; violações sexuais; outras violações dos direitos humanos; às mulheres estarem vedadas as leituras, a escrita, a condução, qualquer profissão, viagens sem a autorização do marido, sendo o prazer associado ao sexo privilégio exclusivamente dos homens, estando-lhes reservados os papéis de parideiras, cuidadoras, cozinheiras, corpo para usufruto, onde as crianças são divididas binariamente por cores (havendo as condenadas cor-de-rosa e os futuros semi-aparentemente-jamais-verdadeiramente-livres-enquanto-não-o-forem-todos azuis); coacção pelas armas, pela tortura, pela chantagem; pelos assassínios das vozes dissonantes; o terrorismo psicológico capaz de vergar o ânimo mais indomável. Nada Margaret Atwood previu ou inventou. Limitou-se a explorar ao limite, além do imaginável, por acumulação de aberrações de que o homem tem vindo a ser capaz, um pouco por todo o mundo e em diferentes tipos de sociedades. É urgente, nos dias que correm, pensarmos sobre algumas questões fundamentais da nossa existência sobre a terra, enquanto seres pensantes, que a série propõe. É vital repensarmos a autodeterminação e o seu papel nas vidas de todos. Além de visualmente avassaladora, com os planos de cima, contrastes, a cor como personagem ubíqua, perturba por que nos demonstra não haver inocentes. Chega-se a estes limites da infâmia, da falta de humanidade e empatia, dia-a-dia, em pequenas acções. Uma escolha aqui, uma omissão ali, um encolher de ombros acolá, um julgamento preconceituoso que nos impede de ver que para lá de todas as diferenças somos todos a mesmíssima espécie de bicho homem. Todos o fazemos, sabemo-lo bem, assim estejamos dispostos a pensar sobre e a assumi-lo. Esta série é particularmente violenta sob o ponto de vista feminino, porém, é um excelente ponto de partida para uma reflexão mais abrangente. Nenhuma ditadura se faz só com o ditador. (Por exemplo, pelo menos, uma mulher esteve declaradamente por detrás daquele sistema altamente castigador para o género de que faz parte. A série é rica em ironias deste tipo.) Em algum momento todos já fomos como as pessoas que aceitam/aceitaram fazer parte de uma qualquer engrenagem por medo, concordância, fanatismo, por um rol infindável de razões. É assim que se ajudam loucos criminosos a manterem-se no poder subjugando, destruindo, assassinando, retrocedendo décadas / séculos em direitos fundamentais conquistados anteriormente. Importantíssima a noção de que cada escolha conta e de que sejam quais forem as circunstâncias essa escolha existe. SEMPRE. O caminho da liberdade é solitário, mas muitas solidões que se tentam compreender e juntam, fazem acontecer o impossível. É assim que têm caído ditaduras, mesmo das mais ferozes e permanentes. Por haver pessoas que na hora decisiva escolhem agir de acordo com o que lhes parece certo e não com o que lhes seria mais conveniente. Nunca esquecerei a primeira vez que a série me trouxe alento, no meio de toda a abjecção. As “servas” deviam apedrejar uma das suas, que segundo o regime teria cometido um crime punível com pena de morte. Agarram nos calhaus e há uma que estende o braço, vira a mão para baixo e deixa-o cair. Todas as outras lhe seguem a coragem. Uma a uma a rejeitar a pedra com que teria de agredir selvaticamente uma companheira até à morte. Arriscando as próprias vidas com a audácia. Claro que a cabecilha desobediente foi torturada, na frente das restantes, como exemplo para que não tornassem a ousar, mas a semente estava lançada. Era impossível voltarem atrás na convicção íntima de terem mais poder do que acreditavam até ali. Pode pagar-se um preço alto pela recusa de se pertencer à manada descerebrada que jamais se escusa ao carreiro delimitado entre um cárcere e o seguinte. Vale a pena, seja qual for, se daí resultar um mundo mais justo para todos. Não começa necessariamente com grandes gestos, está em cada escolha que fazemos no quotidiano e nunca é tarde para reconhecer que não temos feito grande coisa pelo mundo (para melhor) e que também podemos fazer parte de uma qualquer mudança no sentido em que este planeta seja para todos e não apenas para a elite dos que se consideram estirpe superior de seres-humanos.

(Falo desta série a toda a gente. É preciso aguentar os primeiros episódios com o estômago revirado e coragem para aceitar que se trata de muito mais do que mera ficção, aquilo é a desumanidade de que já fomos capazes, esfregada à bruta nas nossas fuças comodistas. São gritos para acordarmos antes que seja tarde, outra vez. A história repete-se. Há sinais do pior por todo o lado e também do melhor. Estejamos atentos, pensemos e escolhamos, em consciência, de que lado estar.)

(A actriz que faz de June, Elisabeth Moss é magnífica.)

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