quarta-feira, 8 de maio de 2013

«A funcionária pública»


Apresentava-se ao serviço às 9h31. Havia o real para digitar. Carecia de tempo e de espaço para a ficção. A dela, imaginada deveras, era mal sucedida. A pilhagem à vida alheia agradava e afigurava-se inverosímil. Quando a liam duvidavam dos factos, aplaudindo-os, desconsiderando o que lhe custara as entranhas a criar. Relevava a injustiça. Havia em si cansaço; dentro das meninges uma voz imperativa, qual matilha de cães latindo, quando não escrevia. Precisava de dinheiro: filhos para criar; necessidades elementares; - Noutras latitudes supérfluas. - Encargos. A certeza de não poder agredir outrem, com as omoplatas, sem que o peito lhe escurecesse. Cria na luz para criar. Uns apreciam a treva. Ela almejava escrevê-la, sem habitá-la. A angústia andava a alimentar-se da alegria de outrora. Consolava-se:

«É por agora. Terei tempo.»

Nunca tinha tempo. Despachava-se tarde dos miúdos, da louça, da roupa; da vida vivida apressada. A matilha enfurecia-se se ela se enrodilhava na fadiga, adiando.

«Amanhã…»

O porvir chegava a hoje e a mesma indolência a afagá-la. Tudo mais importante. Uma birra. Um colo. Gargalhadas bonitas. A limpeza. A arrumação. O aprumo. Os almoços confeccionados de véspera.

«Amanhã.»

O tormento crescia.

«Ladram tão alto estes cães.»

Ainda que acreditasse que haveria de ter tempo, a dúvida:

«Se morro? Que fiz por essa que também sou?»

«Que interessas, tu? Morre descansada. Fizeste o que te competia.»

«A voz? Estes cães? Lobos? Feras que investem garras e presas que me comem o fígado, os pulmões, o coração.»

«Que voz? Que feras? Enlouqueceste?»

«Esta que me ensurdece. Porque não se calam os cães? Não enlouqueci. Sou sã. Ainda. Acabarei louca?»

«Morrerás doente. Não há cura para o mal que te aflige.»

«Há.»

«Pouco importa. Ouve o relógio. Estás sem tempo.»

«Tê-lo-ia, não dormisse.»

«Tens de descansar.»

«Usasse a noite em meu proveito e talvez o silêncio, a paz. Não aguento mais.»

«Definharias.»

«Três, quatro horas de sono. Quanto baste.»

«Não sejas ridícula. Acorda.»

Ti ri ri ri ri. Ti ri ri ri ri.

8h37. Azáfama. 9h31 e o cartão de picar o ponto na mão. A morte às prestações registada, num aparelhinho pregado à parede. Continuou até ao intolerável. A voz: Incomplacente.

«Onde é que guardaste a caneta bordeaux? As folhas brancas onde estão?»

(Os tímpanos da alma a romper-se.)

Principiou trémula, o documento n.º 50 de 2011. Ousou furtar-se ao costumeiro “Vimos pelo presente ofício…”

«Era o dia primeiro do mês em que a decisão fora tomada. Inexorável. Havia tentado preveni-lo do que sucederia, contudo, ele fizera-se massa indefectível para que não o enchessem de desesperança. Era irremediável a situação em que se colocara. Falhara o prazo. Falta imperdoável que se lhe colara à epiderme das mãos. Devolveria o indevidamente recebido. Tê-lo-ia ajudado, estivesse ao seu alcance. Regras eram, todavia, torrentes contra as quais se sentia impotente para nadar, ou sequer manter o fôlego. Creia que há sempre quem se encontre a seu lado e o fim é, não raras vezes, recomeço. Perdoe o lugar-comum. Sem mais para lhe transmitir permita-me que o deixe a pensar onde errou, para que possa, em situação hipotética futura, errar melhor.»

Escolheu manter «Com os meus melhores cumprimentos» como se fora possível disfarçar o desvario. Chamaram-na ao oitavo andar. Ergueram a folha ao nível do seu nariz. Vociferaram. Devolveram a missiva. Limpou a ira alheia do sobrolho e regressou ao 7.º. Ordenaram-lhe que reescrevesse a missiva. Fê-lo com gana que desconhecia encerrar. Impregnou-o de melodia, limpou-o das banalidades. Remeteu-o à revelia da hierarquia superior. Chegara a casa, nessa tarde, leve. Considerava-se capaz de correr, tamanha a alegria. O peso que a gravidez lhe acrescentara refreou o impulso. Correspondeu ao que esperavam de si, no lar, com ânimo reforçado e os seus notaram que o seu sorriso reverberava. Não lho disseram. Não partilhavam o que se passava dentro. Persistiu, por tempo indeterminado, na desobediência e o seu Curriculum vitae permanecia incólume. Trabalhadora exemplar. Despedimento nenhum. A escrita cresceu-lhe. O trabalho diário permitia a evolução. A voz tornara-se meiga. Um cachorro amoroso. Afagava-lhe a consciência. Ela cumpria-se. «Morrerei pacificada.» Acreditava estar mais próxima de escrever Literatura. Não seria lida pelas massas, mas tal não a moía. Tinha um leitor de cada vez que redigia uma participação transformada, com enlevo, em arte. Chegou o dia em que a decisão foi tomada. Apareciam, em catadupa, as respostas ao empreendimento daquela funcionária pública. Não se tratava de cartas de reclamação, antes palavras de incredulidade e reconhecimento. Se por um lado se encontravam devastados pela culpa que lhes fora imputada e que os prejudicava. Por outro, a forma como lhes havia sido comunicado desprovia as respectivas sentenças de crueldade. Revelavam-se inábeis para contestar o que era, no mínimo, estranho. Vinham felicitar os serviços pela façanha e solicitar que, em situações de incumprimentos futuros, fossem notificados por aquela mulher, que se recusava a ser tratada por qualquer título. De nada lhe serviram os louvores. Tão-pouco o facto de ter inúmeros leitores entusiásticos. Foi despedida. Precisava de nova fonte de rendimento. Filhos para alimentar; necessidades primárias. - Noutras latitudes: luxos. - Comprometimentos. A crise instalara-se no País, uns anos antes daquele em que redigira o ofício cinquenta. Foi parar à Rua. Estendia a mão todos os dias úteis, das 9h31 às 17h32. Jamais ficou a dever horas.

A sua mendicidade soava a poesia.

Andreia Azevedo Moreira
Criado em Maio de 2011. Revisão Maio de 2013. 


OBRIGADA POR ME LERES.


 9.º Texto a sair para a Rua.

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