terça-feira, 21 de maio de 2013

«Não era cego mas tinha um cão guia»

Semana #11 – DAR PALAVRAS – Maio de 2013

Era um tipo normal. Mediano em tudo. Tinha noção e a sua auto-estima não lucrava com a lucidez. Não é que se depreciasse. Gostava de si, não obstante a banalidade. Ela também gostava dele. Passava todas as manhãs à frente da sua casa, antes de ir correr para a marginal e por vezes sorria-lhe, depois de dar uma festa no cão – o Pescas. Luís dera-lhe esse nome porque o resgatara na margem de um rio, num dia de pescaria. O cachorro estava prestes a afogar-se, quando ele o salvou do destino que alguém lhe traçara. Sofia há muito que se encantara pela figura daquele homem solitário, mas ainda gostava mais do cão. O único, entre os dois, que reparara nela. De cada vez que se encontravam o bicho ficava frenético. Abanava-se doido de alegria e corria em círculos ao redor de Sofia. Só não se empoleirava na transeunte graças às três semanas de aulas de etiqueta, que o haviam treinado a coibir-se dos impulsos. Luís alheio à felicidade do seu companheiro resmungava um bom dia, sem se dignar encará-la. Ela não ligava. As manifestações amorosas do Pescas eram o bastante. Pode dizer-se que começavam a sobrepor-se à vontade que havia tido, um dia, de conversar com Luís. Cansava-a aquela completa falta de interesse. “Quem não dá uma oportunidade, também não a merece.” Consolava-se. Sofia sabia o nome do cão e desconhecia o nome do taciturno rapaz. Os dias sucediam-se iguais, para um e para o outro. Talvez Sofia fosse menos amargurada, se é que se podem medir as amarguras das pessoas. Luís não se envolvia. Sonhava com uma colega. Pessoa que não lhe retribuía o sentimento e que o usava, para se divertir. Ele permitia-lho. Enredado numa paixão avassaladora. Sofia não era dada a grandes reflexões. Gostava de correr na marginal, do Pescas, do pão quente, pela manhã, que comia com doce de tomate feito pela avó de noventa anos e gostava de respirar fundo, enquanto olhava o céu e esticava os braços em V, como quem vai abraçar as nuvens. Tinha algumas amizades, gostava do seu trabalho, sentia-se bem consigo. Luís acreditava que a única posse era aquele ardor por Mariana. Que fazer da vida, quando a paixão se consumisse? Sentia-se muito sozinho. Era o cão que o impedia de se matar. A vida a escrever-se escorreita. Acaso? Não existe. À noite em casa entregava-se à dança da solidão. Masturbava-se a pensar na outra. De dia, na Rua, ignorava Sofia que se entretinha estudando-lhe o modo de ser. Começou pelo visível: olhos tristes, expressivos; boca contida; sorriso tímido com alguma notícia no jornal comprado diariamente; cabelo revolto, encaracolando junto ao pescoço; ombros caídos; unhas roídas; roupa escura. Andar desajeitado. Voz apagada. Apelos meigos ao cão; nervoso com os atropelos do Pescas. Ar de abandono. Lentidão nos gestos. Desistência da cabeça aos pés. Dava-lhe vontade de o consolar. De o amar, até. Queria dizer-lhe que ele estava enganado com a vida, mas não sabia como. Pois se tão-pouco a olhara. O ritual do cão repetia-se. A cegueira de Luís subsistia. Sofia ria-se e perdoava a indelicadeza ao rapaz.

Andreia Azevedo Moreira
Criado em Outubro de 2009. Saiu pela primeira vez para a Rua em Maio de 2013.


OBRIGADA POR ME LERES.

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