domingo, 10 de março de 2013

«SEM MANEIRAS»


Nenhum dos quatro entendia o que viera ali fazer. Disseram-lhes: sentem-se. (Sentaram-se.) Havia pessoas, ao redor, a conversar há minutos como se, se conhecessem de décadas de convívio e somente aqueles quatro estranhos se estranhassem. O facto de não fazerem ideia quem eram aqueles com quem iriam almoçar não os impediu de sorrirem. O que fazer quando somos constrangimento? Sorrir. Desviar as atenções da ignorância perante o outro, ou do que (nos) espera e, também, daquilo que se quer mostrar, ou que permaneça oculto pelo maior período de tempo possível. Sorrir toda a estupidez. Imaginá-los nus, ou a cagar, para os trazer para perto da própria humanidade. Por baixo da roupa carne, mais ou menos gordura, pele, imperfeições, pilosidades, sinais, tez clara ou escura, odores. Os trajes escondem nus que se assemelham mesmo quando diferem, como as almas aprisionadas nos crânios e nas costelas. Sorriam os quatro ignorantes que mais não eram que corpos nus envergonhados da necessidade, ou do horror, que os fazem de igual modo evacuar, sem contenção. Humilhando. As perninhas debaixo da mesa abanavam. As mãos tremiam, enquanto os pulsos se confrontavam com a mesa para que não fosse evidente o nervosismo. As vozes em falsete não destoavam, nenhum sabia a que soavam as vozes verdadeiras.



«Vim aqui ter de carro ou de comboio?»

«Vi-te chegar no 758.»

«Ouviste-me o pensamento?»

«Não. Nada te disse. O que ouviste? Vim de metro. Entrei no Campo Grande e saí no Cais do Sodré. Subi a Rua do Alecrim a pé.»

«E eles?»

«Sei lá. Não os conheço. Nem te respondo. Tentas ganhar tempo. Desconheces o que dizer de relevante, não é?»

«É um facto. Para que nos sentaram aqui?»

«Às vezes é benéfico não conhecer os outros, tal como não nos conhecemos deveras.»

«Sei quem sou. Não me envolvas nas tuas crises.»

«Crises? Esqueces-te que não me conheces? Tão-pouco te respondo. Tentas somente ganhar tempo...»

«Pois.»
Tímidos sorrisos geram risos, que adivinham gargalhadas e o desassossego esbate-se. Não se treme quando se ri daquela maneira. A seriedade impõe o temor. A imbecilidade permite que a coragem, ainda que ignara, se revele. Quem dos quatro falará primeiro? Nenhum? Todos um coro? (De questões. Insegurança. Solidão.) Querem compor-se, parecerem bonitos, receiam não agradar. Olvidam o pormenor: todos com medo. Não existem os destemidos. Os que mais arriscam são os que mais t(r)emem. Não permitem, todavia, que os agrilhoem. Batem os braços com força e ânimo desmedidos, acreditam poder voar e respiram. Revoltam-se. Berram às pessoas que regozijam no amolgar, enquanto os apelidam de «LOUCOS», que se f o d a m. Persistem num frenesim de asas que os eleva em voo que se não pode medir, numa distância dos pés ao chão. Voam tão alto que jamais os alcançam, os descrentes, embora os insultem como se lhes pudessem chegar. Eis que os quatro, cada um a seu modo, eram dos que voam. Não tardou até que se desenleassem do embaraço para poderem dizer coisas entre si. Queriam comunicar e o que não fosse dito nas palavras que embatiam na língua e nos dentes, sê-lo-ia com olhos, trejeitos, meneares de torsos e dedos a sugerir direcções. As horas sucederam-se e eles esquecidos dos que ocupavam a mesma sala. Paredes caiadas, mudas. Já não os incomodava a familiaridade aparente de outrora, dado que os restantes haviam cessado de existir. Defronte um banquete. Bálsamo para as papilas gustativas e inflamador dos sentidos. Escorreu-lhes o dito nas gargantas com as horas de conversa. Vénus ajeitava o cabelo curto na testa calando muitas interrogações. O tempo não era suficiente para aferir as díspares vontades que, como aranhas, lhe teciam teias nos pulmões. Volta e meia faltava-lhe o ar e ela sentava-se muito direita, procurando que o oxigénio persistisse em fazê-la viver. Ameaçava dizer o que a incomodava. – Uma espécie de torpor. – Inclinava-se para Mercúrio para logo se recostar na cadeira, ingerindo mais puré. Este era a cola que lhe unia os maxilares impossibilitando-lhe qualquer articulação. Mercúrio atento impedia que o silêncio se reinstalasse entre os dois. Falava-lhe sobre o essencial enquanto a descansava com os olhos: «Sou como tu.» Nessas alturas o puré não descia e ela fitava-o muito séria, incapaz de sorrir o seu sorriso bonito. Terra e Saturno, pelo contrário, eram loquacidade cúmplice e diziam além das palavras importantes, aquelas que são só volumes com que se colmatam vazios. Amiúde, Terra repreendia Vénus sem que os companheiros notassem.

«Engole o puré. Que fazes?»

«Cala-te. Que pretendes?» - A cabeça pendendo para a direita, as sobrancelhas acento circunflexo.

«Desculpa. Custa-me ver-te calar. Perder tempo com puré.»

«É comigo. Que sabes de mim e do que me apetece comer?»

«Nada. Nem te conheço. Tens razão. Mastiga o puré. Faz o que te der na gana.»

Vénus abriu a boca a Terra e puré nenhum. Terra sabia que a partir desse momento Vénus iria em sentido que lhe agradava. Não a conhecia mas vê-la confiante era crucial. Vénus e Mercúrio denotavam tensão. Este destruíra, em incontáveis fios, a fita de tecido vermelha que servira para fazer do guardanapo um canudo. Horas antes mirara-a com o mesmo, como se empunhasse um telescópio. O pescoço parcialmente revelado pelo cabelo escorrido, muito abaixo dos ombros, obcecava-o de forma indisfarçável. Com a brincadeira procurava dissipar o ímpeto que o acometia de lho conhecer. Com o rosto? Descendo-lhe suavemente até à clavícula, enquanto o marcava com a barba cerdosa. Com o nariz? Inspirando-lhe o aroma adocicado. Com os lábios humedecidos deixando-lhe rasto de saliva. Decidira render-se à cobardia. Ir ao cinema. Comunicou-o.

- Tenho de partir. Apetece-me um filme. Com sorte chego a tempo da sessão das 18h. É longo como seria duradoura a tarde, se me dispusesse a conhecer-vos melhor. Não necessito de mais três pessoas na minha vida. Vou a esta sessão. Passem bem, sim?

Terra encolheu os ombros. Retorquiu:

- Considero, igualmente, já conhecer o número de pessoas exacto que consigo suportar.

Saturno encarou-os ofendido.

- Folgo em sabê-los tão cheios de pessoas. Para que vieram se estão sem espaço?

Vénus desconcertada balbuciou como se a questão se lhe dirigisse.
   (Não era o caso. Faltavam-lhe pessoas. Uma, pelo menos.)

- Não gosto assim tanto de puré. Gostei de vocês. A argamassa impediu-me, até aqui, de o dizer.

Foi assim, ainda com fios de carne entre os incisivos, passadas horas em que se esqueceram dos disfarces, que recordaram o pudor que sentiam por se resumirem a corpos nus e almas fechadas. Calaram-se. Instalou-se insidiosa a artificialidade e, com essa, a ausência de assunto. Saturno virou-lhes as costas irritado por ser o único a não temer a exposição. Dirigiu-se às paredes já não silenciosas, nem brancas, antes vozes e caras, “adeusinhos” que sorriam dentes de circunstância a dizerem: «Nunca mais te vou ver e não me importo.» Após hercúleo esforço os outros três haviam sucumbido às leis dos demais. Inconcebível para ele que o tivessem feito. Suava descontentamento. Reuniram-se uma última vez em torno da mesa fitando-se. Saturno sustinha o desprezo que os companheiros do repasto lhe inspiravam. Terra perdia-se nas considerações que tecia por dentro das meninges. Vénus percorria com a língua o interior da boca, recriminando-se por todo o puré que ingerira durante anos. Mercúrio fixava-lhe o pescoço num ardor sem precedente. A buzina do táxi arrancou-o à pele daquela mulher.


- ADEUS.


Despediram-se em amplexos demorados nos quais aferiram a real nudez. (Corpos que vibram não se podem ocultar.) Vénus mirou-se na superfície da colher de sobremesa lambida, certificando-se que nenhum puré persistira nos dentes e correu atrás de Mercúrio impondo-se no mesmo táxi. Uma viatura exígua. Dois o número certo de pessoas que comportava. (Quatro, se dois pares se emparelhassem, como Vénus que se sentou em Mercúrio antes de lhe explicar que necessitava de uma boleia para nenhures.) Deu-lhe para rezar. Encarou o tejadilho enquanto ela lhe desapertava as calças e entrelaçava o pescoço no dele. Confrontavam-se ríspidos. Não ousava descolar as mãos do assento, apesar das mamas adivinhadas do tamanho exacto das palmas da sua premência. Era marcado a cheiros, saliva e possessão. No retrovisor não havia rosto para o motorista. Os ombros desprovidos de olhos não os incomodavam, apesar de pejados de ouvidos. Foi por tempo indeterminado que Vénus comandou e Mercúrio foi subjugado. Demonstrado ficou que um silêncio desmedido pode não significar quietude, antes o momento que antecede inexorável predação. O pavor da nudez de Vénus ficara-lhe no restaurante, no braço flectido de Terra que lho segurara com ternura, como ao casaco de uma criança. Como se fossem, até, amigas. Disse: - Convida-me para ir contigo ao cinema.

- Vem comigo ao cinema. A película desenrola-se por mais de quatro horas. Aguentarás tanto tempo a meu lado?

- Não gosto dessa palavra.

- Qual?

- Aguentar.

- Olha para mim. Não vês como sou patético?

Vénus percorreu-lhe os lábios com a língua, de seguida os dentes, o céu da boca. Envolveu-lhe a língua com a sua. Certificou-se que também nele puré nenhum. Narizes encostados. Quatro eram dois olhos imensos de coruja.

«Sou como tu.»


Andreia Azevedo Moreira
Criado em Outubro de 2010. Saiu para a Rua pela primeira vez em Março de 2013.
 
 
OBRIGADA POR ME LERES.
 
P.S. Este conto surgiu na sequência de um almoço organizado pela Revista LER em Outubro de 2010. Dedico-o ao Pedro Mexia, João Pombeiro e Ana Alexandre, meus companheiros de refeição. Todavia, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
 
 

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