terça-feira, 8 de março de 2016

IV - «Ademar»

                                                                                                                                                         
Na rotunda intersecção da avenida do descobridor com a do Repatriamento dos Poveiros, no percurso diário para o meu lugar burocrático, um touro de bronze relembra a glória diminuta dos actos divisores. Gosto de parar defronte olhando as gentes da terra e do mar unas, combativas, abnegadas, fortes. Trabalhadoras. O meu destino, hoje, será diferente. Passo por lá como alguém descobrindo, na bússola, o Norte. Sou poeta. Digo. Sou poeta e entrego um cartão a mulheres sedutoras. De um lado o meu contacto, no verso uma rima. Esta manhã, no Auditório Municipal, cruzei-me com ela. Vem de longe. Notei os modos distintos. Denunciou-a a forma de se mover, antes de lhe ouvir palavra. Estudei-a afastado. Nervosa em gestos repetitivos de confirmação. Verificou a mala, ajeitou o cabelo curto, a franja. Compôs o vestido verde-rubi. Subiu recatada a meia esquerda, quase até ao glúteo. Olhou para o pulso direito à exaustão. De ora em vez, fixava-se nas pessoas que se juntavam nas imediações. Retirava um caderno azul A4, com argolas brancas em espiral, anotava e devolvia-o à carteira. Aproximei-me para me apresentar. É muito bonita quando aguarda. Sorriso. Propus-lhe que nos sentássemos próximos, na Mesa seguinte. Informei-a da folga dada ao relógio de ponto, para me dedicar às Correntes. Dou-lhe a conhecer parte da cidade, no intervalo para o almoço, acaso queira. Fez pouco caso, riu e afastou-se delicada, mal pôde, num trejeito tão doce que me não agrediu a recusa. Não me demovo. Hei-de vê-la nas sessões porvir e se me apetecer falo-lhe outra e outra vez, até que amoleça ou aceda a dar-me atenção ou. Gosto de conversar, tanto como de fêmeas belas e, com isto, não quero dizer irreais. Esta foge dos cânones mas revela qualidade atraente e rara: Autonomia. Intuo apetência para a rebelião por detrás do porte impassível. O que faz esta solitária a quilómetros de si. Parece de gelo e é lume daqueles em que um homem se queima e desfigura, para sempre. Careço de esperança mas ajo com ludibriante jovialidade, por isso me levam na brincadeira. Esta, exemplo comum. Desconfiada, rindo em excesso do que lhe disse. Desacreditando a intensidade colocada nas palavras proferidas. Escarneceu da disponibilidade que demonstrei para me revelar. Vontade de a ferir pela ideia preconcebida que faz dos homens. Não entendo. Audaz e um gesto simples, como a confidência trocada entre estranhos, tamanho constrangimento. Encolheu-se amedrontada, esquiva. Deu passos pequenos atrás. Pressenti a intenção de me deixar sozinho. No princípio da repulsa saí de cena. Despedi-me com vénia afantochada. Adoraria ouvi-las rir por bons motivos. Cócegas que lhes fizesse com os cabelos na epiderme dos adutores. Queixume useiro. Na plateia observei-a ávido de olhos postos no Eminente E.. As mãos tremiam-lhe alvas, geladas. Dava tudo para ter impressões digitais daquelas a percorrerem-me voluntariosas. Não suspeitou ou mostrou-se indiferente a que a espiasse. Terá anotado o que ele disse ao detalhe. Escrevia a velocidade incrível sem verificar o redigido. Era retribuída na intensidade. Num auditório esgotado torna-se difícil aferir quem vêem os convidados. Olhos atentos atestariam a conexão. Quanta raiva dele. Há pessoas-facilidade e, outras, infortúnio no esforço. Terá havido mulher a valorizar a minha poesia. Releio os versos, inepto para desvendar a insuficiência de que padecem.

Insisto.









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OBRIGADA POR ME LERES.