sábado, 19 de outubro de 2013

«NATHANIEL»

Nathaniel nasceu com uma enfermidade. A sua coluna apresentava curvatura acentuada. O queixo fundiu-se com o externo. Nunca fitou alguém. Os pais tocavam-lhe receosos. Não ousavam erguê-lo para lhe conhecer o rosto. Se Deus o criara assim, fora a forma que encontrara de os proteger da fealdade. Não havia, neles, repulsa. Amavam o filho. Sofriam por terem feito nascer, quem nunca seria feliz. Como existir com a cara escondida? Eram os anos quarenta do século vinte e os médicos quando o observavam – Os diversos especialistas que os pais procuraram, antes de desistirem. – Colocavam o mesmo ar grave e meneando a cabeça, preparavam-nos para o irremediável. Resignaram-se. Não tiveram mais filhos dedicando-se, exclusivamente, ao filho informe. Ele era uma criança alegre. Percebia-se pelas gargalhadas; pela expansividade dos gestos; pelos saltos de contentamento; pela voz doce e optimista. Não tinha tempo para birras. Dócil, solícito e curioso. Embora nunca tenham tido certezas quanto aos pensamentos daquele rapazinho caracol, apaziguavam-se com a serenidade que lhes transmitia. A mãe chorava assumindo a derrota, enquanto espreitava o filho, de longe. Richard aproximava-se, abraçava-a com força e terno dizia-lhe – Inspirando o perfume do seu cabelo, junto à orelha. – Não sofras Sylvia. Ele desconhece a desgraça do próprio corpo. O coração é grande e a cabeça livre. Somos mais do que o físico. O nosso menino é belo e feliz. Sylvia encolhia os ombros, mastigava o desgosto que lhe subira pela garganta e engolia-o de novo. O quotidiano não se compadecia. Optaram por não o inscrever na escola. Queriam poupá-lo à crueldade alheia. Inventaram jogos e brincadeiras com que o ensinaram a ler e a escrever. A instrução de ambos era bastante para que Nathan aprendesse a somar, subtrair, dividir e multiplicar. Aprendeu, também, a resolver equações. Richard e Sylvia eram pessoas cultas e de posses. Nada lhe faltou, enquanto crescia. O passatempo preferido dos dois era quando ele levava o pai, pela mão, até à biblioteca que possuíam em casa e lhe pedia um livro, para essa semana. O que melhor descrevesse determinado sentimento.

“O que é a amizade paizinho?”
“Só a dor nos faz chorar?”
“Que quer dizer solidão?”
“Quando poderei afirmar que sou livre?”
“Pai, quero ler o amor.”

Cada livro uma possibilidade, para as questões que colocara. A leitura era o seu modo de chegar aos sentimentos e cura para o peito oprimido. Decorreram duas décadas em que o passar do tempo foi uma carícia. Não se rebelava com a condição de homem enrolado sobre si. Um dia caiu-lhe o céu, quando os pais, ao regressarem a casa, vindos da mercearia do fundo da rua, foram atingidos por uma placa de mármore que se soltou de um prédio. A polícia informou-o: «Ardeu-te a vida rapaz». Veio-lhe à memória o livro que lera, ainda menino, sobre a morte; os que lhe denunciaram o que era a revolta, ou a dor e compreendeu de que lhe haviam falado os livros medo e solidão. Sentiu-se, pela primeira vez, deformado. Aquela efemeridade dava-lhe falta de ar. Fechou os olhos e deixou-se ficar na escuridão. Não tardou até que aparecessem, como as baratas das fendas das construções, os familiares. Pessoas que lhe chamavam entre dentes “o monstro”, ou “a coisa”, nas reuniões de família. Gente que se ria quando passava e que na presença dos pais: «Anda bem o menino?» Nathan conhecia as pessoas pela voz e adivinhava-lhes, sem dificuldade, a natureza no timbre, fossem quais fossem as palavras proferidas. As pessoas esqueciam-se que Nathan não era surdo, nem estúpido. Invejavam o amor dos pais e o nascimento dele era o presente envenenado que os excitava. Castigo por fintarem a vida que se esperava miserável, para todos, ao terem encontrado nos braços um do outro, um amor verdadeiro. Nunca tinham auxiliado Richard e Sylvia. Apareciam agora.

- Nojentos! - Abafava o grito no estômago.

Chorava, silencioso, para que não lhe adivinhassem o desânimo. Recordou a história sobre o “Perdão”. Pensou no que os pais quereriam, mas deixou-lhes, sem luta, a moradia imprestável. O corpo nascera dobrado. O espírito era recto, como o atestaria um prumo para aferir almas, existisse um. Passou a viver na rua. Quem o avistava revelava-se incapaz de ultrapassar a compaixão que aquela posição de presumida infelicidade impunha. Eram mais as pessoas que desviavam o olhar incomodadas, enquanto lhe estendiam um dólar, do que as que o encaravam no mesmo gesto. Como se o ser incapaz de as olhar, se reflectisse. Confesso que me aconteceu o mesmo. Era dolorosa a sua presença. Sintomas físicos da repulsa. Envergonhava-me desses sentimentos, culpado de me achar perfeito. Considerava que a minha compleição era uma injustiça para com aquele desgraçado. Alegrava-me que ele não nos pudesse observar. Aos normais. Era um consolo que não pudesse conceber a que sabe a inveja. O que desconhecia, à data, é que ele era abençoado. Poupado aos nossos olhares, podia manter-se puro. Não se enchia de rancor. A beleza conheceu-a pelos livros, que não só lhe descreveram, em pormenor, o que não podia admirar, – O mar, as montanhas, ou o céu rendilhado de luz. – como lhe permitiram experimentar inúmeras realidades. Recordo o dia em que, pela primeira vez, lhe falei. Nathan nunca se sentou aguardando a esmola alheia. Vagueava, pelos quarteirões, com um saco de plástico em cada mão. Andrajoso, sujo, mal-cheiroso, guiava-se pelos passos das pessoas, a seu lado, para atravessar em segurança. Nunca se afastava demasiado daquela que elegera a sua casa: a Biblioteca Pública de Nova Iorque. Não o deixavam permanecer durante muito tempo. O segurança convidava-o a sair, após as inúmeras queixas das pessoas que não toleravam o confrontado com a sua imagem. O odor desagradável não era o que mais as incomodava. Era como se temessem que o mal de que Nathan padecia, as atingisse, qual doença contagiosa. Puro instinto. As pessoas não o faziam com malícia. Uma vez expulso, dirigia-se ao Parque Bryant onde se entretinha com os pardais que saltitavam, disputando migalhas. No dia em que o abordei, estava a dobrar a esquina da Rua 40, com a Sexta Avenida. Falei-lhe incerto que me ouvisse, ou compreendesse. Receava obter resposta que correspondesse à sua terrível aparência. Sentia-me incapaz de continuar a ignorá-lo. Já não era suficiente o dinheiro que lhe estendera em dias que precederam esse, para me calar a consciência. Não era para que se alimentasse, que lhe dava alguns dólares. Tentava, sim, saciar a minha voz de dentro. Que poderia fazer por aquele homem? A que propósito me sentia responsável por ele? Naquele dia todas as perguntas foram gritos a atormentar-me. Sem que pudesse, ou quisesse evitá-lo, pousei-lhe a mão no ombro, naquela esquina da cidade, impedindo-o de prosseguir e disse-lhe:

- Chamo-me Sammuel.

Estacou, rodou sobre os calcanhares e pousando os sacos no chão, respondeu-me numa voz bela, como quem está acostumado com a amabilidade das pessoas:

- Olá Sammuel. Prazer. Sou o Nathaniel. Podes tratar-me por Nathan. Aproveito que me falaste para te pedir um favor. Pode ser?
Surpreendido com a familiaridade com que me tratou disse-lhe que sim agitando a cabeça, esquecendo que ele não me podia ver o gesto. Respondi depois, numa voz sumida:

- Diz Nathan. É um prazer conhecer-te. Farei o que puder.

- Preciso que me tragas um livro que fale sobre o desprezo. Tentei pedi-lo ali dentro. – Levantou o braço para a biblioteca. – Mandaram-me sair antes de ter oportunidade de explicar ao que ia.

Disse-me que se entretinha a ler os mais variados documentos de que as pessoas se esqueciam nas mesas, ou no relvado, do Parque Bryant. Era muito raro esquecerem-se de livros. Sentia-lhes a falta. Trouxera um da casa dos pais. Transportava-o junto ao peito. O frio não lhe chegaria aos pulmões. Comprometi-me a comparecer no dia seguinte, pelas seis da tarde, na primeira mesa do parque, ou junto dela, quando se entra pela Rua 42.

Nathan não me incumbira de tarefa fácil. Era um leitor inconstante e não culto, quanto bastasse, para descortinar o melhor título para lhe falar sobre “desprezo”. Graças a ele travei amizade com Conrad, um bibliotecário carrancudo, que simpatizou com a minha causa. Foram anos em que a nossa amizade se consolidou. Três improváveis e leais amigos. Aprendemos muito uns com os outros. Trazíamos o melhor de nós para essa relação incorruptível. Do pedido inicial de Nathan nasciam interpretações surpreendentes e díspares, para um mesmo livro. Cada um dos três o lia e o mote inicial desencadeava debates de muitas horas numa das mesas de latão ou, se fazia calor, no relvado do parque. Cada um explanava o seu modo de o perceber, sentir e o que havia aprendido. A polémica instalava-se sempre, por sermos os três tão diferentes. Aconteceu, por exemplo, quando Nathan nos pediu um livro “vingança”. A minha família, bem como a de Conrad, não ousava questionar a amizade. Viram Nathan algumas vezes. Encolhiam os ombros. Enojadas e contrafeitas. Não o verbalizavam o que me deixava satisfeito. Não fazia tenção de deixar de o ver. Enfrentaria quem me tentasse dissuadir desta relação. Conrad também não toleraria a intromissão. Não nos questionávamos como seria a vida de Nathan longe de nós, ou do parque Bryant, porque ele assim nos exigira. Aprendemos a calar o “Onde dorme?”; “O que terá para comer?”; “O que será dele esta noite?”; que nos atemorizavam em cada despedida.

Um dia em que Conrad não pôde comparecer, ousei pedir que me deixasse espreitar-lhe o rosto. Nathan soltou uma gargalhada e indagou irónico:

- Para que queres semelhante privilégio? Nem eu alguma vez o vi e olha que não é por isso que me conheço pior, do que te conheces. 

- Tens razão, mas gostava de te encarar. É nos olhos que nos mora a alma. Dizem. Um olhar recíproco. Que me dizes?

- Não me oponho ao pedido de um amigo. Confio que tenha a minha cara o aspecto que tiver, serás capaz de ver o que os meus olhos te dirão. Tenho medo de te perder; a tua reacção poderá afastar-nos. Força, diz-me lá como é que sou.

Flecti as pernas, apoiei-me nos seus joelhos e espreitei. Arrependo-me de lho ter pedido. Depois desse dia desapareceu. Procurei-o pelas ruas da cidade, durante meses, sem que houvesse rasto da sua passagem. Ninguém sabia dele. Lamentei, durante muito tempo, a minha atitude. Chorei outro tanto, até que se me acabaram as lágrimas. Não o encontrei. Nathan era belo. Feições perfeitas, olhos iluminados, inocentes e o seu sorriso terno e envolvente. Ri-me. Abracei-o. Contei-lhe com pormenor a cor dos olhos, como se delineavam os lábios, a cor da sua boca e dos dentes. Falei-lhe do seu nariz perfeito. Enterneci-me com as covinhas que lhe pontuavam as bochechas e com as rugas de expressão que ladeavam o seu olhar compreensão. Entusiasmado desenhei oralmente o seu arrebatador retrato. Quando me calei extenuado de tamanha comoção ele ajudou-me a levantar, deu-me outro abraço demorado e disse-me “Obrigado”. Partiu de seguida e foi a última vez que o vi. Conrad não me perdoou a imprudência. Acusou-me de egoísmo e futilidade. Perdi a amizade que tínhamos. Agi mal. Não me perdoo. Sinto-lhes a falta todos os dias. Recordo-os cada vez que pego num livro.

Andreia Azevedo Moreira
Saiu pela primeira vez à Rua em 19 de Outubro de 2013

OBRIGADA POR ME LERES.


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