Acabei ontem o «Mea culpa» da
Carla Pais. Não há, nesta vida de livros, o que me deixe mais feliz do que ler um
de alguém que conheço e ter vontade de passar palavra, para que chegue a mais
olhos leitores. Este é um daqueles poderosos que convocam também o corpo para a
leitura, de tal forma as palavras atingem, certeiras. Escrito com a coragem de
dizer a vida arruinada exactamente como é, de um modo único. Belo. A voz da escritora
é inconfundível. As frases encantatórias sussurram a trama bem urdida,
afundam-nos no universo desesperante das personagens, todavia, entregam em cada
página um fio de esperança, luz, beleza. De poesia. Duas pessoas criadas na
desatenção que ao desamor pertence. Uma, Amadeu, regressa no treze de Maio à
sua terra, de onde saiu escorraçado sob a acusação de um crime não cometido,
para acertar contas com as alminhas cruéis, hipócritas, de roupa impoluta
estendida e mãos nos peitos esvaziados aos domingos. Volta para não mais se
esconder. Filho da puta da aldeia habituou-se ao afastamento, a que esperassem
pouco do «malandro», a que não lhe fossem dadas oportunidades. Dez anos de
cárcere mataram-lhe muita coisa dentro, mas geraram o espírito indómito que se
comove com o abandono de um cãozito e o ampara, como se se provesse do afecto que
faltou desde a própria concepção. Com o regresso a memória. Assistimos à
injustiça, à impiedade, à tragédia, a como a verdade se esconde demasiado tempo
sob o olhar das pessoas coniventes. Enquanto um retorna, a outra mal-amada foge
de casa. Briosa filha de uma mãe-destroço alcoólica, demolidora, que penaliza
os filhos pelas vilanias do pai-avô. Briosa irmã de um homem-bicho acorrentado
impedido da dignidade e a quem cuida como pode. Esta menina «de encantos
fáceis» ainda não sabe nomear o que sente. Mas percebe que sente e destemida
entrega-se ao que puder viver. Pensamento livre parte para descobrir o mundo
para lá das montanhas altas. (Aparentemente tão intransponíveis como os muros
de uma prisão.) Vai na senda de respostas. Como serão os ninhos, os homens, o
seu cheiro, a luz para lá do seu inferno. Lá, onde a voz da mãe a ameaçar
matá-la não a alcance. Esta é uma história rica de gente viva. Um padre
pecador, um presidente da junta criminoso, um coveiro gentil, um pastor solitário,
um chulo sebento, beatas devotas à maledicência e aos preconceitos. Entre o
regresso e a fuga os caminhos dos dois enjeitados vão cruzar-se, para nos
provarem que onde haja vida, por mais desgraçada, nada submeterá o amor.
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OBRIGADA POR ME LERES.