terça-feira, 16 de janeiro de 2018

MEA CULPA - CARLA PAIS


Acabei ontem o «Mea culpa» da Carla Pais. Não há, nesta vida de livros, o que me deixe mais feliz do que ler um de alguém que conheço e ter vontade de passar palavra, para que chegue a mais olhos leitores. Este é um daqueles poderosos que convocam também o corpo para a leitura, de tal forma as palavras atingem, certeiras. Escrito com a coragem de dizer a vida arruinada exactamente como é, de um modo único. Belo. A voz da escritora é inconfundível. As frases encantatórias sussurram a trama bem urdida, afundam-nos no universo desesperante das personagens, todavia, entregam em cada página um fio de esperança, luz, beleza. De poesia. Duas pessoas criadas na desatenção que ao desamor pertence. Uma, Amadeu, regressa no treze de Maio à sua terra, de onde saiu escorraçado sob a acusação de um crime não cometido, para acertar contas com as alminhas cruéis, hipócritas, de roupa impoluta estendida e mãos nos peitos esvaziados aos domingos. Volta para não mais se esconder. Filho da puta da aldeia habituou-se ao afastamento, a que esperassem pouco do «malandro», a que não lhe fossem dadas oportunidades. Dez anos de cárcere mataram-lhe muita coisa dentro, mas geraram o espírito indómito que se comove com o abandono de um cãozito e o ampara, como se se provesse do afecto que faltou desde a própria concepção. Com o regresso a memória. Assistimos à injustiça, à impiedade, à tragédia, a como a verdade se esconde demasiado tempo sob o olhar das pessoas coniventes. Enquanto um retorna, a outra mal-amada foge de casa. Briosa filha de uma mãe-destroço alcoólica, demolidora, que penaliza os filhos pelas vilanias do pai-avô. Briosa irmã de um homem-bicho acorrentado impedido da dignidade e a quem cuida como pode. Esta menina «de encantos fáceis» ainda não sabe nomear o que sente. Mas percebe que sente e destemida entrega-se ao que puder viver. Pensamento livre parte para descobrir o mundo para lá das montanhas altas. (Aparentemente tão intransponíveis como os muros de uma prisão.) Vai na senda de respostas. Como serão os ninhos, os homens, o seu cheiro, a luz para lá do seu inferno. Lá, onde a voz da mãe a ameaçar matá-la não a alcance. Esta é uma história rica de gente viva. Um padre pecador, um presidente da junta criminoso, um coveiro gentil, um pastor solitário, um chulo sebento, beatas devotas à maledicência e aos preconceitos. Entre o regresso e a fuga os caminhos dos dois enjeitados vão cruzar-se, para nos provarem que onde haja vida, por mais desgraçada, nada submeterá o amor.       

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OBRIGADA POR ME LERES.