sábado, 6 de janeiro de 2024

"Mixórdia de temáticas"

Não, não venho falar da rubrica do RAP na rádio Comercial. Não sou taradona como era a semana passada. Já consigo pensar noutros temas. 

Porém, o título da rubrica é perfeito para a desordem que vai aqui dentro e me impele a escrever sobre assuntos variados que parecem não estar relacionados e talvez não estejam. 

Com um intervalo de poucos dias, aqui há umas semanas, vi dois filmes que ficaram a conversar comigo:

Il sol dell'avvenire do Nanni Moretti: https://www.youtube.com/watch?v=7zTmhwq8OH8 

(Deixo isto aqui, não me agradeçam:

 https://open.spotify.com/intl-pt/album/2khZ4KVWd8KdTpfvN9SF9a )

e Good luck to you, Leo Grande da Sophie Hyde: https://www.youtube.com/watch?v=TJcbZoJFLTU

O italiano é um maravilhoso pout(pot?)-pourri existencialista com tantas camadas que quero revê-lo para ir cheirando, atentamente, cada essência. À medida que decorria diante dos meus olhos, ia sendo atingida pelas subtilezas do realizador. Estou certa de ter deixado escapar imenso ao primeiro visionamento. É genial o Moretti, encantador, tragicómico, obsessivo, melancólico, esperançoso e ao contrário do que dizem os netflixianos dentro da película, cheio de momentos WTF que nos deixam desarmados com a argúcia e a delicadeza do argumento que toca a vida humana como um pianista de excelência o seu amado instrumento. (Ai perdoem, isto agora resvalou para a ordinarice pirosa.) 

A questão é, por mais que me esmifre para tentar explicar o filme, não há melhor remédio do que pegarem no corpinho e irem vê-lo onde estiver. Cheira-me que já não vão a tempo, no grande ecrã, mas que esta afirmação não vos demova de o procurarem afincadamente para tirarem as vossas próprias conclusões:

  https://cinecartaz.publico.pt/filme/il-sol-dellavvenire-410635). 

Que perspectiva do filme é que me interessa para o que vim aqui debitar? Uma que não será certamente tão falada e que é a da mulher do Artista. Daquelas que permitem aos génios serem-no e terem a possibilidade de constituírem famílias, tantas vezes à custa das próprias vidas criativas das companheiras que abdicam de serem quem poderiam, em prol dos génios criativos dos respectivos. Graças a estas mulheres, eles podem ter os seus ateliers, os seus escritórios, as suas casas na Caparica, os seus casos amorosos. Eles podem viajar pelo mundo inteiro, exercer a sua arte nas horas úteis dos dias e dizer à boca cheia que quem quer ser isto ou aquilo tem de trabalhar nisto ou naquilo das tantas às tantas, até mesmo ao fim de semana. Podem comparecer a 256.000 conferências, onde botam o seu sábio discurso e voltar a casa, cumpridos, para os beijos e os abraços aos descendentes que entretanto já têm os rabos lavados e já se alimentaram. Podem crescer, evoluir, construir as suas carreiras. E elas, elas também podem, claro, que isto quando uma mulher põe uma na cachimónia não há o que a demova de alcançar o que quiser, porém, o tempo que lhe resta é, não raras vezes, o da noite. É o de roubar horas ao sono, descanso ao corpo. E se houver que optar entre a arte e os filhos que existam (exceptuando, talvez, a Paula Rego que não se ensaiava de dizer aos seus que o mais importante era o trabalho) pois prefere morrer de desgosto e frustração, a maior parte, do que partir o coração às crias por não ser presente. Claro que há as clarividentes que fizeram escolhas em seu favor. Mulheres que desde cedo perceberam que certas opções cortam as pernas ou, no mínimo, nos deixam coxas. Essas abdicaram de procriar. E porquê? Porque não puderam "ter tudo" à semelhança dos colegas?

Bom mas desviei-me. Paola, mulher de Giovanni e habitual produtora dos seus filmes cansa-se de ser a mulher do génio, a que está lá para todas as horas, a que consegue falar de tudo com ele menos dos dois. A companheira que compreende e ampara os desânimos dele mas que se sente desacompanhada nos seus e decide, apesar da dificuldade em comunicar-lho, deixá-lo. Saber quem pode ser para lá dele e do universo avassalador que ele representa. Saber quem é sem ele: eis a questão.

Quem é uma mulher sem um homem?

Quem pode ser?

Porque é que tantas mulheres se definem pelo que julgam ser o amor? Por que depositam o seu poder pessoal em mãos que não são as suas?

(Atenção que este foi o prisma que usei para falar do que me atormentava mas o filme do Nanni é imenso, desmesurado, magnífico e aborda a humanidade na sua inteireza, não vão só pelo meu lado contestatário/ressabiado e necessariamente limitado ao meu universo hetero-ocidental)

Chego a Nancy Stokes, interpretada por Emma Thompson, uma viúva que procura descobrir-se sexualmente e mais além, após décadas em que se negou todas as aventuras. E porquê? Pergunto. Porquê? Porquê? Porquê? Por que morreram tantas mulheres sem saberem o que é um orgasmo? Por que morreram tantas mulheres, velhas, para quem o sexo foi a vida toda «quando o meu homem se serve de mim»? Porque vivem, tantas mulheres, a sua sexualidade focadas no prazer que dão, sem se sentirem merecedoras da reciprocidade? Por que se esquecem de si mesmas, do que querem, do que precisam?

Felizmente, Nancy recusa finar-se desconhecendo a que sabe o prazer e faz uma lista do que quer experimentar, contratando para tal um trabalhador sexual lindo de doer. Leo, o grande. Cerca de trinta anos mais novo do que ela. Pela primeira vez, ela concede-se perder a cabeça. Fazer o insuspeito. Não sem espanto. Não sem resistência, resistência essa que a personagem interpretada por  Daryl McCormack vence com uma paciência inverosímil mas de tal modo terna e delicada que acedemos, com entusiasmo, suspender a descrença.

O que também quero trazer para a mesa do canto: o preconceito que existe com a idade das mulheres. Uma mulher velha com um homem jovem não é aceite com a facilidade com que engolimos um par constituído por um velho e uma jovem. Se é que é aceite de todo. Até eu, para aqui armada aos cucos a colocar estas questões me lembro de não ter percebido, logo, que o colega detective da Mare (Kate Winslet) estava a arrastar a asa e de me ter surpreendido quando tal se tornou óbvio. Ah! Os preconceitos que carregamos sem ter a noção.     

Entendi por dentro, com dor e angústia, a surpresa de Nancy acerca da possibilidade de o corpo jovem de Leo poder reagir com tesão ao seu corpo envelhecido, do qual nunca gostou. Por que razão somos implacáveis com o nosso corpo? Por que nos debatemos para aceitá-lo como é, quando raras vezes questionamos compleições alheias. Que espada é esta com que crescemos? 

Desconstrução, já!

E chego ao próximo grito:

Na sexta-feira ouvi uma adolescente do alto dos seus catorze anos, afirmar com veemência como se fosse o mais importante a atingir na sua vida futura: eu quero casar!

Como é que aos catorze já é tão importante casar? 

E viajar? E conhecer? E explorar? E partir? E regressar? E perceber? E conhecer-se? Experimentar?

As miúdas ainda sonham em serem princesas, ainda querem ser salvas pelos seus príncipes e o futuro é feito de acabar a universidade, casar e ter filhos. 

Haverá excepções, como havia no meu tempo (e eu, claro está, não fui essa excepção à regra). O que nos impele para a norma sem questionamento?

O que nos faz desejar tanto ou aceitar tão-só as mesmas coisas desde tempos imemoriais?

Ouvi a mesma miúda relatar os comportamentos abusivos que muitos adolescentes reciprocamente mantêm em pleno século XXI. Querendo ser donos e senhores uns dos outros. Donos dos pensamentos, dos actos, das omissões. Determinando, inclusive (fiquei chocada) o que hão-de vestir.

Bendit@s @s rebeldes. @s loucos. @s ostracizad@s.

Bendit@s @s que seguem os próprios caminhos com quem tanto podemos aprender se escolhermos enfrentar o medo de caminhar sozinh@s.

Arrepio-me com o tom de certos discursos que fazem lembrar a distopia Handmaid's Tale.

Comovo-me com a candura dos que se crêem acima da humanidade, dos que acreditam que o amor só é genuíno e leal se exclusivo.

Então por que cultivamos várias amizades? Não é porventura amor puro, leal e sublimado: a amizade?

Fecho com esta canção (que me foi dada a conhecer pelo Paulo José Miranda numa das suas sessões sobre canções): 

To be with others - Michelle Gurevich -  https://www.youtube.com/watch?v=xeeosq6jGzE

Uma canção corajosa, honesta e crua que expõe a hipocrisia quando se trata da norma dos relacionamentos amorosos.

Bem, se alguma alminha chegou aqui, sem ressonar ou saltar linhas, obrigada.

"Ah e tal... Ela fala, fala, fala mas eu não a vejo a fazer nada."

Aprendo a fazer perguntas. É tudo.

Aquele abraço.



    


 

     



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