quarta-feira, 10 de abril de 2024

APNEIA




Este livro falou directamente com a minha solidão maior. Com o meu inferno, com os demónios que devoraram a maior parte dos dias interiores. Pela primeira vez, senti-me inteira e incondicionalmente compreendida. Os livros sempre vieram em meu auxílio. Eis porque creio que eles me chamam da estante, desta vez, do colo que o transportava no comboio para ser emprestado a uma amiga. Sabia do que tratava, por isso, embora o tivesse desde 2020, quando foi lançado, adiei-o. Era agora e não antes que precisava de o ler. Era agora e não antes que precisava mais do que nunca de reler o que foi, para não permitir que o trauma regresse aos meus dias com a força destrutiva de um tsunami. Eis uma grande escritora que escreve o que não viveu com uma sensibilidade desarmante, com uma compreensão plena e livre de julgamentos, usando a imaginação para falar do que é. A escrita: poética e crua; graciosa e inclemente; revelando interpela. Isto existe. Infelizmente mais do que se quer ver. O lugar de fala pertence aos que ocupam o lugar em causa mas também àqueles que, nunca o tendo vivido, escolhem usar a sua voz para fazerem falar os amordaçados, para mostrarem os invisíveis. Agradeço (com o coração já cheio da esperança que recuperei com muito esforço, muita dor e desespero) à Tânia ter escolhido este tema, ter escolhido narrar esta história. Foi como receber um abraço e ouvir (com os meus ouvidos de criança crescendo): eu vejo-te, eu ouço-te, eu acredito em ti. Sem mas. Este livro destrói as muralhas de silêncio que se constroem à volta de quem conhece a violência doméstica. (A família é sacralizada e intocável e quem lhe tente escapar será proscrito.) Pela ficção faz a justiça aos sobreviventes que a realidade raríssimas vezes conseguirá. A sociedade não está preparada para lidar com personalidades psicopatas. As pessoas, as instituições, os familiares, os vizinhos, os colegas, as autoridades, a "justiça", não fazem por mal e tentam encaixar a sua humanidade num lugar vazio, onde apenas impera a manipulação. Não fazem por mal, mas também não fazem bem e ajudam, na sua ignorância, a perpetuar as agressões, afundando ainda mais as vítimas em vergonha, em culpa, em isolamento. Felizmente, o tipo de letra, a organização dos capítulos e o espaçamento deixam a respiração fazer-se, onde o que se lê priva, a cada parágrafo, do fôlego. Obrigada, Tânia. Nenhum agradecimento fará jus ao bem que me trouxeste. A minha noite mais escura está toda aqui. Liberto-me de vez. Ou mais uma vez. Todas as vezes que ainda precisar, porque citando o Variações «quero é viver!».


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OBRIGADA POR ME LERES.