«Sou feliz com o cheiro da terra quando
chego a Garvlae e abro a janela, para pagar a portagem.»
Gostava de ser o tipo de pessoa que se
alegra com impressões olfactivas. Dava o conteúdo da minha conta bancária para
ter dito isto. Nunca me ocorreria. Foi Amarin quem me falou assim. Terei todo o
prazer em contar-vos sobre o que me faz feliz. Ser-vos-á desagradável, creio.
Começo pelo nome, depois veremos. Chamo-me Liexao Icke. Nasci trinta e um anos
após a Segunda Guerra. Detestaria viver naquela época, fardado, parte
integrante de um exército. As pessoas formatadas irritam-me. As obedientes
enojam-me. Um batalhão reforça-se com gente submissa. Sem submissão não há
guerras, nem carne para munir canhões. O mundo que fabricámos é merda porque
houve e haverá, sempre, os que baixam as cabeças e abdicam de pensar por si
mesmos. Também desprezo os senhores que se aproveitam dessas almas subalternas.
Nasci forte, tenho responsabilidades. Se conheço mais e alcanço mais longe, se
ocupo lugar que me confere poder, tenho de medir as forças que emprego. Isto
não é bondade. É o equilíbrio que devo ao Universo. Será reclamado. Conheço a
minha posição e apesar do desinteresse em comandar, é-me inevitável se se
rendem ainda nem iniciei o confronto.
Amarin
não é fraca. Age como tal. Acredita num défice de coragem que me empenhei em
incutir-lhe. Mudei as lentes da sua alma. É extasiado que o declaro. Certa vez,
abordei o medo. Ela estava muito quieta, direita, ouvindo-me atenta com os
olhos castanhos. Idolatrava-me. Não recordo a idade que teria. Não teve grande
importância. Passou magra e discreta, cá dentro, como a vizinha a quem achamos
piada e, houvesse oportunidade, com quem gostaríamos de dar uma, mas temos
dificuldade em memorizar o nome. Baixei o tom de voz, até a um timbre quase
inaudível. «O Medo.» Terá sentido o rumor do meu hálito no
pescoço. Os caracóis escuros estremeceram no arrepio. Manteve-se muda. «O
Medo.» Era bonita a minha morena em pânico, fitando a
televisão. Fixava o olhar míope, compenetrada, para impedir o horror de
entrar. O espanto dela excitava-me. Podia estar uma tarde inteira a sussurrar «O
medo…», apenas para poder observar as mãos esguias cravarem-se nas
coxas-tentação, que testemunhei inseguras na primeira marcha. Angariei amigos
para o dizerem comigo. Não se descontrolava. Remetia-se ao silêncio, como a
presa encurralada que acredita. De tanto ouvir sobre o temor encheu os bolsos e
tinha-o para dar, às mãos cheias. Não entendo não me ter odiado. Fiz o que
pude, desde que ma passaram para as mãos suja de fezes e sangue. Ou era imune,
ou encontrava cura no riso e no choro dos quais abusava, sem consideração pela
injustiça das emoções. Risse como ela, sufocaria. Admito apenas o tipo de humor
que faz cócegas a pouca gente, porque menos entendível. O óbvio não me aquece.
O fácil não me move. A simplicidade cansa-me. Amarin era simples, inocente, espontânea,
suave. Parva. A sua gargalhada agredia-me. Quem a ensinou a ser alegre? Houve
tempos mortos, nos quais me dediquei a estudá-la. Queria desvendar o mecanismo
daquela autenticidade. Ambicionava desmontar a representação, convicto que, por
detrás do pacifismo estaria a verdade; a zanga; o mal. A minha morte. Chorasse
metade do que verteu, morreria afogado. Era obsceno o seu modo comovido de
levar a vida. Quando visitámos o Zoo lamentou a candura dos aprisionados.
Passou minutos defronte das grades, que os distinguiam, a encará-los.
«Para eles sou uma janela.»
Caminhava até ao seguinte. Ridicularizei a
missão que abraçara e não obstante a reverência que me devotava prosseguiu,
ignorando-me. Fê-lo até que todos os animais tivessem experimentado a liberdade.
No fim da tarde afirmou: «Não torno.» Assim foi. Provoquei-a. Cancelei
encontros por me negar o destino proposto. Não cedeu, embora escurecesse de
saudade. Eu, nada sentia. Fazia-o por desporto, para castigá-la por ousar
contrariar-me. Divertia-me a sua vontade de estar comigo, que a maltratava.
Talvez Amarin fosse estúpida. Não sei. Desconheço do que é capaz a couraça do
amor. Pessoalmente, o bem-querer que dominei foi à Arte. Um prato com comida
pode sê-lo, sejam nele depositadas as quantidades justas de empenho,
criatividade, talento e esforço. Eis o amor em estado puro. Da Arte pouco
espero, além de frustração. A demanda que não cessa. Um caminhar incansável.
Aprendo a menosprezar o desgaste que o insucesso traz. Já de uma pessoa espero
muito. Que não adoeça, para não me maçar com trabalhos; que me ame
incondicionalmente; não me abandone; me dê prazer; que seja companhia, ouvinte,
interlocutor, salvação; algo que possa pontapear, com o que me sobeja em
amargura e me faça “FELIZ!”. Não acaba o quanto esperamos dos outros. Onde não
houve incúria? Na educação dela. Inatacável. Teve acesso à excelência. Se não
aproveitou deveu-se ao feitio de asno. Mantinha-se imperturbável, qual sequoia,
perante os incêndios que lhe ateávamos, ao redor. Giravam vinis de Stravinsky,
implorava por bandas com nome de cidade remota. Pergunto: Morre-se de paixão
com aquele barulho nos ouvidos? Levei-a a espectáculos de dança que eram como
ver, de perto, o paraíso, sentou-se ao lado agarrada ao dispositivo táctil e ar
lunático, a desviar-lhe as feições. Ignorante por convicção. Livro que eu
sugerisse e a leitura ficava pelas primeiras páginas. As minhas estantes jamais
a cativaram. A melhor literatura dava lugar a histórias de cordel terríveis. O
meu gosto coíbe-me de enunciá-las. Tenho uma teoria acerca do pouco espaço que
ocupou, na minha vida: Espirrei-a. Foi um desperdício dos meus pulmões.
Estranhei-a sem a entranhar, contrariando o poeta. Não se apercebia. Era fiel.
O cão que se alegrava com a minha chegada e entristecia, na despedida.
Defender-me-ia com o corpo. Usei-a sem parcimónia. Não me envergonho, ou
arrependo. Preciso de me saber a existência e a extinção para alguém. Consenti
que me lambesse mãos, pés, os restos. Acolhi, com deleite, a sua
vulnerabilidade. Interrogo-me se ela desconhecia a humilhação, ou a tolerava
refém do meu amor sem respostas. As minhas demonstrações de orgulho, pelas suas
conquistas, eram nulas. Chegava contente para me falar de uma vitória,
desmantelava-lhe a alegria. Arrogante. Vibrava ao fazê-lo em público. Quanto
mais a expusesse ao ridículo, melhor. Maior o entretenimento. Ri-me, muitas
vezes, do seu rosto carente e ela sem desistir. Não compreendia a teimosia.
Ambicionava que me odiasse, de tanto me querer. Desejava que se estragasse, que
lhe apodrecesse a ternura e se preenchesse dos vazios que eu hábil urdia, nas
suas emoções. Ela ia somando prémios: Revelação aqui, originalidade ali.
Destaques na imprensa, além. Os louvores alheios não a consolavam, quando me
procurava expectante e eu devolvia tédio e silêncio. Creio que não perdia a
esperança de um dia me apanhar a lacrimejar, babar, ou qualquer disparate do
género que as pessoas segregam, quando gostam umas das outras e alguém triunfa.
Pobre rapariga. Acreditava-se capaz de me reparar e ao mundo e que o faria,
começando por si mesma. Uma idiotice. O mundo não tem conserto, sabemo-lo. Não
o havia de ter através de uma miúda sem QI, movida a vísceras. Idealista sem
causa relevante. Por outro lado, a minha falta de conserto era um equívoco. Não
estava danificado. O nosso mal foi a inabilidade dela, para o conceber.
Naquele Domingo combinámos lanchar. Eu
levava um saco de memórias corrompidas. Recusou-se a recebê-lo. Dispensava
prendas. A minha presença seria o bastante, para estar bem. Tentava, amiúde,
abraçar-me com a meiguice do olhar, já que o toque e os afectos estavam
excluídos, da equação que nos escrevi. Insisti que abrisse os presentes, quando
terminámos as torradas com manteiga, doce de tomate e o chá com leite. Cada
papel que rasgava, à minha frente, era o som do que lhe faziam as minhas
intenções aos sonhos. Eu rejubilava. Ela respirava com maior dificuldade, ao
avançar nas descobertas. Uma vez revelado o último presente encarou-me, sem
indício de emoção. Os olhos estavam secos, contrariando o que eu antecipara.
Perguntou-me: «É isto?» Nada respondi, além do sorriso. Depois ficou tudo
branco. Havia um brilho que me cegava e uma Amarin sem expressão. Pela primeira
vez ela não era transparente. Não conseguia decifrar em que pensava, o que
sentia, a vontade que lhe subia ao peito e faria mover as mãos, houvesse sangue
aquecido nas veias de gente passiva. O controlo da situação abandonara-me,
todavia, sentia-me leve. Fitava-me esquisita, de baixo para cima. Havia desafio
e desnorte. Tristeza e orgulho. Perda e soma. Havia ressentimento e amor. Não
pude calcular o que predominava. O «Noves fora, nada»? Afastámo-nos
inconscientes um do outro. Amaldiçoei-a: «O amor que te neguei, não será.» Não
que desejasse mal maior do que o que já lhe tinha imposto, mas sou realista.
Parecia resignada e ao mesmo tempo preparada para ir buscá-lo, noutros lugares.
Os olhos mantiveram-se indiferentes ao que lhe embrulhara. As mãos ainda me
davam festas, na mesa. Os pés acusavam o nervo da despedida. Quis dizer. Não
disse. Quis sentir. Não pude. Quis fazer. Estaquei. Ela saiu, a correr, da
pastelaria. Decidi berrar à mulher-criança, então surda para me ouvir, que
tropeçava, caía e prosseguia, Rua abaixo, desprezando os meus rogos. Não me
sentia forte, nem a sua vida, tão-pouco o seu fim. Era o chão percorrido.
Amarin pisava-me para escapar e o fôlego não me permitiu rasteirá-la, contra o
que fora hábito durante anos. Desapareceu, ponto minúsculo, ao dobrar a esquina
do Lote 15. Parasita. Fingidora. Coisa...
«AMARIN!»
Sinto-me feliz quando me deparo com os
azulejos das fachadas da Cidade, nos meus passeios, conduzida pelo piano, em Dó
menor, de Bethoven. Sou-o nesta esplanada, a beber café e a Ler: «Era um dia
claro e frio de Abril, nos relógios batiam as treze.»*
Penso no meu Icke. Estivesse comigo dizia-lhe.
*Citação do livro de George Orwell «Mil
Novecentos e Oitenta e Quatro
Texto #56 a sair para a Rua com o DAR PALAVRAS.
OBRIGADA POR ME LERES.
Publicação original aqui:
http://preguicamagazine.com/2015/03/18/conto-amarin-o-que-faltou/
Agradeço a oportunidade que o querido Paulo Kellerman me deu, ao publicar três dos meus textos («Amor?», «Amarin - o que faltou» e «Check-in») no espaço dinamizado por ele, na Preguiça Magazine.
Trata-se de um grande escritor que merece ser conhecido. Recomendo «Gastar palavras» - Prémio Camilo Castelo Branco de 2005 e «Os Mundos Separados que Partilhamos».
Podem acompanhá-lo, também, aqui:
http://agavetadopaulo.blogspot.pt/2016/05/contagio.html.
Texto #56 a sair para a Rua com o DAR PALAVRAS.
OBRIGADA POR ME LERES.
Publicação original aqui:
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Agradeço a oportunidade que o querido Paulo Kellerman me deu, ao publicar três dos meus textos («Amor?», «Amarin - o que faltou» e «Check-in») no espaço dinamizado por ele, na Preguiça Magazine.
Trata-se de um grande escritor que merece ser conhecido. Recomendo «Gastar palavras» - Prémio Camilo Castelo Branco de 2005 e «Os Mundos Separados que Partilhamos».
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