quarta-feira, 29 de junho de 2016

«AMARIN – O QUE FALTOU»


«Sou feliz com o cheiro da terra quando chego a Garvlae e abro a janela, para pagar a portagem.»

Gostava de ser o tipo de pessoa que se alegra com impressões olfactivas. Dava o conteúdo da minha conta bancária para ter dito isto. Nunca me ocorreria. Foi Amarin quem me falou assim. Terei todo o prazer em contar-vos sobre o que me faz feliz. Ser-vos-á desagradável, creio. Começo pelo nome, depois veremos. Chamo-me Liexao Icke. Nasci trinta e um anos após a Segunda Guerra. Detestaria viver naquela época, fardado, parte integrante de um exército. As pessoas formatadas irritam-me. As obedientes enojam-me. Um batalhão reforça-se com gente submissa. Sem submissão não há guerras, nem carne para munir canhões. O mundo que fabricámos é merda porque houve e haverá, sempre, os que baixam as cabeças e abdicam de pensar por si mesmos. Também desprezo os senhores que se aproveitam dessas almas subalternas. Nasci forte, tenho responsabilidades. Se conheço mais e alcanço mais longe, se ocupo lugar que me confere poder, tenho de medir as forças que emprego. Isto não é bondade. É o equilíbrio que devo ao Universo. Será reclamado. Conheço a minha posição e apesar do desinteresse em comandar, é-me inevitável se se rendem ainda nem iniciei o confronto.

Amarin não é fraca. Age como tal. Acredita num défice de coragem que me empenhei em incutir-lhe. Mudei as lentes da sua alma. É extasiado que o declaro. Certa vez, abordei o medo. Ela estava muito quieta, direita, ouvindo-me atenta com os olhos castanhos. Idolatrava-me. Não recordo a idade que teria. Não teve grande importância. Passou magra e discreta, cá dentro, como a vizinha a quem achamos piada e, houvesse oportunidade, com quem gostaríamos de dar uma, mas temos dificuldade em memorizar o nome. Baixei o tom de voz, até a um timbre quase inaudível. «O Medo.» Terá sentido o rumor do meu hálito no pescoço. Os caracóis escuros estremeceram no arrepio. Manteve-se muda. «O Medo.» Era bonita a minha morena em pânico, fitando a televisão. Fixava o olhar míope, compenetrada, para impedir o horror de entrar. O espanto dela excitava-me. Podia estar uma tarde inteira a sussurrar «O medo…», apenas para poder observar as mãos esguias cravarem-se nas coxas-tentação, que testemunhei inseguras na primeira marcha. Angariei amigos para o dizerem comigo. Não se descontrolava. Remetia-se ao silêncio, como a presa encurralada que acredita. De tanto ouvir sobre o temor encheu os bolsos e tinha-o para dar, às mãos cheias. Não entendo não me ter odiado. Fiz o que pude, desde que ma passaram para as mãos suja de fezes e sangue. Ou era imune, ou encontrava cura no riso e no choro dos quais abusava, sem consideração pela injustiça das emoções. Risse como ela, sufocaria. Admito apenas o tipo de humor que faz cócegas a pouca gente, porque menos entendível. O óbvio não me aquece. O fácil não me move. A simplicidade cansa-me. Amarin era simples, inocente, espontânea, suave. Parva. A sua gargalhada agredia-me. Quem a ensinou a ser alegre? Houve tempos mortos, nos quais me dediquei a estudá-la. Queria desvendar o mecanismo daquela autenticidade. Ambicionava desmontar a representação, convicto que, por detrás do pacifismo estaria a verdade; a zanga; o mal. A minha morte. Chorasse metade do que verteu, morreria afogado. Era obsceno o seu modo comovido de levar a vida. Quando visitámos o Zoo lamentou a candura dos aprisionados. Passou minutos defronte das grades, que os distinguiam, a encará-los.

«Para eles sou uma janela.»

Caminhava até ao seguinte. Ridicularizei a missão que abraçara e não obstante a reverência que me devotava prosseguiu, ignorando-me. Fê-lo até que todos os animais tivessem experimentado a liberdade. No fim da tarde afirmou: «Não torno.» Assim foi. Provoquei-a. Cancelei encontros por me negar o destino proposto. Não cedeu, embora escurecesse de saudade. Eu, nada sentia. Fazia-o por desporto, para castigá-la por ousar contrariar-me. Divertia-me a sua vontade de estar comigo, que a maltratava. Talvez Amarin fosse estúpida. Não sei. Desconheço do que é capaz a couraça do amor. Pessoalmente, o bem-querer que dominei foi à Arte. Um prato com comida pode sê-lo, sejam nele depositadas as quantidades justas de empenho, criatividade, talento e esforço. Eis o amor em estado puro. Da Arte pouco espero, além de frustração. A demanda que não cessa. Um caminhar incansável. Aprendo a menosprezar o desgaste que o insucesso traz. Já de uma pessoa espero muito. Que não adoeça, para não me maçar com trabalhos; que me ame incondicionalmente; não me abandone; me dê prazer; que seja companhia, ouvinte, interlocutor, salvação; algo que possa pontapear, com o que me sobeja em amargura e me faça “FELIZ!”. Não acaba o quanto esperamos dos outros. Onde não houve incúria? Na educação dela. Inatacável. Teve acesso à excelência. Se não aproveitou deveu-se ao feitio de asno. Mantinha-se imperturbável, qual sequoia, perante os incêndios que lhe ateávamos, ao redor. Giravam vinis de Stravinsky, implorava por bandas com nome de cidade remota. Pergunto: Morre-se de paixão com aquele barulho nos ouvidos? Levei-a a espectáculos de dança que eram como ver, de perto, o paraíso, sentou-se ao lado agarrada ao dispositivo táctil e ar lunático, a desviar-lhe as feições. Ignorante por convicção. Livro que eu sugerisse e a leitura ficava pelas primeiras páginas. As minhas estantes jamais a cativaram. A melhor literatura dava lugar a histórias de cordel terríveis. O meu gosto coíbe-me de enunciá-las. Tenho uma teoria acerca do pouco espaço que ocupou, na minha vida: Espirrei-a. Foi um desperdício dos meus pulmões. Estranhei-a sem a entranhar, contrariando o poeta. Não se apercebia. Era fiel. O cão que se alegrava com a minha chegada e entristecia, na despedida. Defender-me-ia com o corpo. Usei-a sem parcimónia. Não me envergonho, ou arrependo. Preciso de me saber a existência e a extinção para alguém. Consenti que me lambesse mãos, pés, os restos. Acolhi, com deleite, a sua vulnerabilidade. Interrogo-me se ela desconhecia a humilhação, ou a tolerava refém do meu amor sem respostas. As minhas demonstrações de orgulho, pelas suas conquistas, eram nulas. Chegava contente para me falar de uma vitória, desmantelava-lhe a alegria. Arrogante. Vibrava ao fazê-lo em público. Quanto mais a expusesse ao ridículo, melhor. Maior o entretenimento. Ri-me, muitas vezes, do seu rosto carente e ela sem desistir. Não compreendia a teimosia. Ambicionava que me odiasse, de tanto me querer. Desejava que se estragasse, que lhe apodrecesse a ternura e se preenchesse dos vazios que eu hábil urdia, nas suas emoções. Ela ia somando prémios: Revelação aqui, originalidade ali. Destaques na imprensa, além. Os louvores alheios não a consolavam, quando me procurava expectante e eu devolvia tédio e silêncio. Creio que não perdia a esperança de um dia me apanhar a lacrimejar, babar, ou qualquer disparate do género que as pessoas segregam, quando gostam umas das outras e alguém triunfa. Pobre rapariga. Acreditava-se capaz de me reparar e ao mundo e que o faria, começando por si mesma. Uma idiotice. O mundo não tem conserto, sabemo-lo. Não o havia de ter através de uma miúda sem QI, movida a vísceras. Idealista sem causa relevante. Por outro lado, a minha falta de conserto era um equívoco. Não estava danificado. O nosso mal foi a inabilidade dela, para o conceber.

Naquele Domingo combinámos lanchar. Eu levava um saco de memórias corrompidas. Recusou-se a recebê-lo. Dispensava prendas. A minha presença seria o bastante, para estar bem. Tentava, amiúde, abraçar-me com a meiguice do olhar, já que o toque e os afectos estavam excluídos, da equação que nos escrevi. Insisti que abrisse os presentes, quando terminámos as torradas com manteiga, doce de tomate e o chá com leite. Cada papel que rasgava, à minha frente, era o som do que lhe faziam as minhas intenções aos sonhos. Eu rejubilava. Ela respirava com maior dificuldade, ao avançar nas descobertas. Uma vez revelado o último presente encarou-me, sem indício de emoção. Os olhos estavam secos, contrariando o que eu antecipara. Perguntou-me: «É isto?» Nada respondi, além do sorriso. Depois ficou tudo branco. Havia um brilho que me cegava e uma Amarin sem expressão. Pela primeira vez ela não era transparente. Não conseguia decifrar em que pensava, o que sentia, a vontade que lhe subia ao peito e faria mover as mãos, houvesse sangue aquecido nas veias de gente passiva. O controlo da situação abandonara-me, todavia, sentia-me leve. Fitava-me esquisita, de baixo para cima. Havia desafio e desnorte. Tristeza e orgulho. Perda e soma. Havia ressentimento e amor. Não pude calcular o que predominava. O «Noves fora, nada»? Afastámo-nos inconscientes um do outro. Amaldiçoei-a: «O amor que te neguei, não será.» Não que desejasse mal maior do que o que já lhe tinha imposto, mas sou realista. Parecia resignada e ao mesmo tempo preparada para ir buscá-lo, noutros lugares. Os olhos mantiveram-se indiferentes ao que lhe embrulhara. As mãos ainda me davam festas, na mesa. Os pés acusavam o nervo da despedida. Quis dizer. Não disse. Quis sentir. Não pude. Quis fazer. Estaquei. Ela saiu, a correr, da pastelaria. Decidi berrar à mulher-criança, então surda para me ouvir, que tropeçava, caía e prosseguia, Rua abaixo, desprezando os meus rogos. Não me sentia forte, nem a sua vida, tão-pouco o seu fim. Era o chão percorrido. Amarin pisava-me para escapar e o fôlego não me permitiu rasteirá-la, contra o que fora hábito durante anos. Desapareceu, ponto minúsculo, ao dobrar a esquina do Lote 15. Parasita. Fingidora. Coisa... 

«AMARIN!»     

Sinto-me feliz quando me deparo com os azulejos das fachadas da Cidade, nos meus passeios, conduzida pelo piano, em Dó menor, de Bethoven. Sou-o nesta esplanada, a beber café e a Ler: «Era um dia claro e frio de Abril, nos relógios batiam as treze.»*

Penso no meu Icke. Estivesse comigo dizia-lhe.

*Citação do livro de George Orwell «Mil Novecentos e Oitenta e Quatro



Texto #56 a sair para a Rua com o DAR PALAVRAS.
OBRIGADA POR ME LERES.


Publicação original aqui: 
http://preguicamagazine.com/2015/03/18/conto-amarin-o-que-faltou/

Agradeço a oportunidade que o querido Paulo Kellerman me deu, ao publicar três dos meus textos («Amor?», «Amarin - o que faltou» e «Check-in») no espaço dinamizado por ele, na Preguiça Magazine.

Trata-se de um grande escritor que merece ser conhecido. Recomendo «Gastar palavras» - Prémio Camilo Castelo Branco de 2005 e «Os Mundos Separados que Partilhamos».

Podem acompanhá-lo, também, aqui:
http://agavetadopaulo.blogspot.pt/2016/05/contagio.html.

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