quinta-feira, 24 de março de 2016

VII

Eu | escrevo.

Escrevi.

Crescendo com desentendimentos, quando me reconheci ímpar, no abuso, no primeiro dia de escola, nas paixões ingénuas e nas perversas, ao descobrir a traição dos que amei e as próprias, com a mesma facilidade, na tarde da decisão definitiva.

Escrevi.

Estava um dia de sol asfixiante. Suávamos. Apetecia-me um gelado. Fui até ao parque com a minha irmã. Levámos as bicicletas. Havia crianças a brincarem. Riam, empurravam-se para as caixas de areia, caíam perdidas de riso e eu desentendia o que se passava com elas. Divertidas. Porquê. Que argumentos se guardam para alimentar a ligeireza. Invejava-as. Tinha dezasseis anos e sentia-me pesada, velha nos olhos. Carente de qualquer coisa. Aproximei-me com o intuito de as envenenar. Dei três passos largos de punhos cerrados. Contive-me. Encarei Ivone. Os maxilares tensos. Comuniquei: “Não quero filhos.” Escarneceu da resolução, certa de que eu mudaria de ideias. Ela casou. Teve-os, aos quatro, de parto natural. Parideira-nata. Envelheceu mal mesmo sem rugas. Desistiu de ter vontades. Sorriso imposto ao rosto, inclinação fixa da cabeça “Não troco isto. Por nada.” O pescoço fraquejando. A coluna incerta. Passou à descendência amargura bastante para sobrar para as deles. Debatem-se para contentá-la errando sempre. Desconheço qual das duas a opção correcta. Somos infelizes. Eu livre, ela com compromissos para mais anos do que os que lhe restam. Do tempo que me concedi pouco tenho a apresentar. Ela desprovida desse luxo destino semelhante. Dois caminhos divergentes e o resultado tão parecido. As conversas entre nós azedaram, frustradas demais para nos suportarmos, trocámos acusações sem sairmos do próprio calçado. Agredimo-nos. Afastámo-nos, em simultâneo. Escrevo apesar do mutismo da tinta. Barro. Laranja, verde-claro, verde-escuro, branco-clara, amarela, branco-cheiro-maresia. Barro. Um lenço de pontas a atar em cruz. Saboreio o estrugido que embebe a pescada e o pão torrado isenta de preocupações com terceiros. Ela alimentava. Uma boca, duas, três, quatro. Sucumbia ao cansaço antes de saciar apetites. Rendeu-se. O seu universo distribuído por quatro rostos e a expressão tão distante quanto a da máscara com que dissimulo a alma. Ivone, uma fronteira de arame farpado. Nem o doce desta bola frita aplaca o sabor da sua ausência. Única pessoa a aceitar-me sem estranheza, mesmo nos dislates. Podia ler para ela uma tarde inteira. Acreditava se lhe contava “Eu escrevo” antes de haver uma página, uma frase, a palavra primeira. Alimentava-me da sua confiança. Choro termo-nos perdido. A quem dedicar as primeiras linhas com cor. Escreverei para Ivone. Sem aquela irmã, o percurso comum ou a resolução não poderia sair do Leonardo, neste instante, para comprar uma caneta. Comprá-la-ei. Decido. A caneta azul de bico macio desliza na folha, transparente. Escrevo. Prazer.

«Tenho-a.»     

Está escrito.



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OBRIGADA POR ME LERES.