A bibliotecária encontrou-a
às duas e meia da tarde com os braços carregados de livros demonstrando-se inapta
para lhos subtrair ou argumentar, com sucesso, a favor da devolução. Ela
mantém-se em silêncio quieta, feto com a carga junto ao peito. Na
secção onde caiu faltam, na prateleira classificada em oito, todas as obras do
Eminente E.. O queixo treme incontrolável. Os olhos liquefeitos denunciam
arrependimento ou perda idêntica.
Estacionei do lado da
escola e dirigi-me mal disposto ao interior. Tinha começado a almoçar e o
telefone tocou. Engoli a refeição quase sem mastigar. Encontrou-me no bolso da
Teresa, julgou-me conhecido uma vez que havia as referências musicais no verso
do cartão-de-visita e informações adicionais ela reservou para si. Chamei-a
pelo nome, indaguei se se lembrava de ter estado no táxi comigo, na véspera ou
da Teresa Teng. Permaneceu desolada, esclarecimento nenhum. A funcionária sem
vontade de condescender informou-me que teria de telefonar para a polícia para
resolver a questão. Tinha afazeres, não podia continuar ali e evitava ser ela a
obrigá-la a abdicar dos volumes. Acalmei-a. Pedi-lhe que me desse alguns
minutos até avisar as autoridades competentes. Sem perspectivas de correr bem,
cantei-lhe uma das canções que lhe sugerira:
Don't look so sad, I know it's over.
But life goes on, and this old world
will keep on turning.
Let's just be glad we had some time
to spend together.
There's no need to watch the bridges
that we're burning.[1]
Ao contrário do que seria
recomendável, ao invés de lha sussurrar, berrei desafinado. A bibliotecária de
pupilas horrorizadas e boca comprimida limitou-se a elevar o indicador aos
lábios. Os utilizadores entreolharam-se em esgares duvidosos. Encavacado
mantive a actuação. Teresa S. acordou do transe. Riu às gargalhadas até ser
capaz de falar informando-me que lhe doíam as costelas. Largou a carga, levantou-se,
ajeitou a roupa e deu-me um abraço apertado no esqueleto. Ofereci-me para
levá-la onde quisesse. Concordou. Antes, apanhou os livros deixando-os cair à
vez até equilibrar a pilha. Levou-os até ao balcão. Pediu desculpas à séria
senhora que encolheu os ombros como se fosse usual, de vez em quando, alguém
perder a cabeça com um vulto daquela grandeza. A leitora abraçou-a
demoradamente e ela manteve-se hirta com os braços colados ao corpo e a cabeça estática
olhando a direito. Permitiu-lhe o beijo depositado na face, embora o tenha
arrastado, discreta, com o ombro assim que pôde. Então, Teresa S. deu-me a mão
e saímos da Biblioteca Municipal ao som das rodinhas. Sentámo-nos um pouco nas
escadas da entrada principal com ela a estudar a fachada incompleta do orfeão,
transplantada para este lugar como um portal mágico há uns anos.
- Falha-me a literatura
logo me salva a música.
- Hum?
- Esqueça. Falava comigo.
- Para onde?
- Leve-me ao Hotel A-Ver-o-Mar.
- Fica? Sente-se capaz?
- Sim, estou bem. Até ao
fim.
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OBRIGADA POR ME LERES.