terça-feira, 29 de março de 2016

VIII

A bibliotecária encontrou-a às duas e meia da tarde com os braços carregados de livros demonstrando-se inapta para lhos subtrair ou argumentar, com sucesso, a favor da devolução. Ela mantém-se em silêncio quieta, feto com a carga junto ao peito. Na secção onde caiu faltam, na prateleira classificada em oito, todas as obras do Eminente E.. O queixo treme incontrolável. Os olhos liquefeitos denunciam arrependimento ou perda idêntica.

Estacionei do lado da escola e dirigi-me mal disposto ao interior. Tinha começado a almoçar e o telefone tocou. Engoli a refeição quase sem mastigar. Encontrou-me no bolso da Teresa, julgou-me conhecido uma vez que havia as referências musicais no verso do cartão-de-visita e informações adicionais ela reservou para si. Chamei-a pelo nome, indaguei se se lembrava de ter estado no táxi comigo, na véspera ou da Teresa Teng. Permaneceu desolada, esclarecimento nenhum. A funcionária sem vontade de condescender informou-me que teria de telefonar para a polícia para resolver a questão. Tinha afazeres, não podia continuar ali e evitava ser ela a obrigá-la a abdicar dos volumes. Acalmei-a. Pedi-lhe que me desse alguns minutos até avisar as autoridades competentes. Sem perspectivas de correr bem, cantei-lhe uma das canções que lhe sugerira:

Don't look so sad, I know it's over.
But life goes on, and this old world will keep on turning.
Let's just be glad we had some time to spend together.
There's no need to watch the bridges that we're burning.[1]

Ao contrário do que seria recomendável, ao invés de lha sussurrar, berrei desafinado. A bibliotecária de pupilas horrorizadas e boca comprimida limitou-se a elevar o indicador aos lábios. Os utilizadores entreolharam-se em esgares duvidosos. Encavacado mantive a actuação. Teresa S. acordou do transe. Riu às gargalhadas até ser capaz de falar informando-me que lhe doíam as costelas. Largou a carga, levantou-se, ajeitou a roupa e deu-me um abraço apertado no esqueleto. Ofereci-me para levá-la onde quisesse. Concordou. Antes, apanhou os livros deixando-os cair à vez até equilibrar a pilha. Levou-os até ao balcão. Pediu desculpas à séria senhora que encolheu os ombros como se fosse usual, de vez em quando, alguém perder a cabeça com um vulto daquela grandeza. A leitora abraçou-a demoradamente e ela manteve-se hirta com os braços colados ao corpo e a cabeça estática olhando a direito. Permitiu-lhe o beijo depositado na face, embora o tenha arrastado, discreta, com o ombro assim que pôde. Então, Teresa S. deu-me a mão e saímos da Biblioteca Municipal ao som das rodinhas. Sentámo-nos um pouco nas escadas da entrada principal com ela a estudar a fachada incompleta do orfeão, transplantada para este lugar como um portal mágico há uns anos.

- Falha-me a literatura logo me salva a música.

- Hum?

- Esqueça. Falava comigo.

- Para onde?

- Leve-me ao Hotel A-Ver-o-Mar.

- Fica? Sente-se capaz?

- Sim, estou bem. Até ao fim.    




[1] Kris Kristofferson - For the good times (1970)

















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OBRIGADA POR ME LERES.