quinta-feira, 28 de abril de 2016

XIV - Preia-mar; 04h49; 3.32m











                                                                                                                   
Quando as Correntes D’Escritas estrearam estava com quarenta e três anos. Adiava-me para a idade da reforma. Comparecer nesse encontro com a literatura, os livros, os autores e os meus pares era o mais próximo que chegava da paixão cativa. Os dias passados entre as estantes dos clássicos e dos filósofos haviam-me inundado de inibições face a grandes aventuras. Os eventos com os escritores que lá se dirigiam para falar a alunos das escolas ou a públicos mais velhos, aumentava a inércia. Encarava o ímpeto qual sacrilégio. Está tudo feito, muito mais bem dito do que serás capaz. Quieta. Obedeci à sensatez. Um neurinoma na coluna vertebral, aos cinquenta, alterou-me o ponto de vista. A história poderia estar prestes a ser interrompida. O facto de a massa ser benigna não me sossegou. Entrei em pânico com o atraso que me havia imposto. Durante anos escrevera páginas para as destruir. O que estás a fazer, mãe? Coisas sem importância, amor. Vou brincar convosco. Querem fazer o quê? Amachucava-as e deitava-as no balde inconclusivo, desmerecedoras de pensamento adicional. No ano do diagnóstico recordei as folhas amarrotadas, irrecuperáveis. Por que as diminuí daquela maneira. Saltei condenações e decidi fazer até à desistência do corpo. Só então o senti falível. Classificara o saldo de horas como infinito e a mim inábil para me dedicar a várias causas, em simultâneo, pelo que abracei a óbvia. Tratar da prole. Ninguém conhecia o meu sacrifício porque, até então, jamais expressara essa faceta privada. Filha de pescador, tinha sido um prodígio o meu pai ordenar que abandonasse a areia para ir estudar. Inteligente e visionário recusou que a vida dura da faina me fizesse murchar, cedo demais. Por motivos de saúde da minha mãe, fui filha única. As expectativas sem divisão possível da carga. Esforcei-me para ser o que esperavam. A média ficou aquém da imprescindível para ser doutora, mas poupei-os ao anúncio de uma filha com aspirações de artista. Tornei-me exímia na arte de o ocultar. Mais tarde, rodeei-me de amigos com reservas comuns. Reunimo-nos à volta dos títulos eleitos. Lemos, discutimos ideais, inventamos fins alternativos aos propostos pelos autores, organizamos encontros de leitores e da primeira à última Mesa das Correntes duas filas da plateia são nossas. O primeiro a chegar marca os assentos. Nas assistências sobrelotadas as pessoas protestam. Daí que tentemos ser pontuais para o núcleo se manter junto. Na feira do livro combinamos as compras de modo a levarmos a maioria das obras que nos interessem. Temos uma biblioteca itinerante entre casas e corre bem. De resto, fazemos as nossas compras nas pequenas livrarias independentes que subsistem. Tudo isto me é caro e tem ajudado a superar a interrupção que me havia imposto, contudo, revelou-se insuficiente. Havia que contar as minhas histórias. As que careciam das soluções que só a ficção que eu criasse poderia encontrar. As que me trariam o consolo de consertar os irremediáveis agressores. Iniciar-me pelo familiar, para poder dar passos maiores, trata-se do abecedário dos aspirantes. Aprendi, à custa de muitas linhas sonegadas, a desistir das palavras com maiúsculas no meio das frases. Ofendiam os textos.

Saltavam-me à mão hesitações e clamores, dada a ânsia de recuperar parte do tempo desperdiçado. A gana de me constatar renascida. Percebi do que devia abdicar. Os melhores ensinaram-me que devo impor a ficção à realidade, na vez de me contentar com desforras mal concebidas e forçadas à primeira. Domei palavras como ingente. Trouxe-as para perto. Ouvem-se sem serem proferidas. Na primeira noite de insónia comecei a Manuela. Fascinava-me a precocidade das meninas feitas adultas pelo casamento. Como podiam ser convictas do amor. Havia as que casavam por conveniência das famílias. Casamentos fora das castas eram mal recebidos. Manuela, tal como me chegou, destacava-se. Fê-lo por arrebatamento. Apaixonou-me a sua persistência, a convicção de que António tornaria. Era muito jovem quando aconteceu. Podia ter reconstruído a sua vida ao lado de outro pescador. Os pretendentes sobejavam. Podia ter abandonado a existência pesqueira e partir com homem que se fixasse no interior e vivesse da terra. No entanto, sem se entender porquê, teimou no quotidiano ao sabor das marés, até àquele sol-pôr em que a verdade ficou submersa. O corpo jamais deu notícias. Impressionam-me as pessoas austeras que se impõem uma rigidez de costumes que condena antes do fim. Em Manuela ressaltava da sua essência pormenor escorregadio. Algo nas suas atitudes se distanciava da ideia de viúva triste. Esse subtil desacerto foi o gatilho para que a quisesse reescrever. Desejava conhecê-la melhor, entender a sua passagem por cá. A torrente revelou-se imparável. Hoje, pondero os meus interesses com equidade. A adaptação foi mais fácil do que previ. Os obstáculos eram mentais. Quem me quer bem entende as ausências e aceita-mas. Os restantes diabolizam a dedicação enorme ao indizível, sem remuneração que se veja. Da incomensurável entrega ao que faço não aguardo dividendos. É acto puro.


Doação.

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OBRIGADA POR ME LERES.