Toda a evasiva é exterior. Daí ter resolvido regressar. A
estadia paga até domingo. Os miúdos encaminhados com o Ricardo, lá em baixo.
Fico. Disse “Não”. Engraçado que bater com a porta, para mim, equivalha a levar
com a dita com estrondo. No caminho renegado sinto a dor do desfecho como se
tivesse sido E. a promovê-lo. Passei a tarde a dormir. O surto desta manhã um
pesadelo remoto. Dormi pesada em cima do colchão estranho. Tive sorte de a
bibliotecária me ter proibido, apenas, de repetir a graça. Grata. Estes dias
são o oásis do meu quotidiano. Sede de me isolar. A literatura é o pretexto
para que os meus aceitem ausência prolongada. Procuro a solidão obstinada,
tanto quanto os que anseiam companhia buscam alguém que os resolva. Passo bem
sem pessoas. Seria desgosto se lhes causasse a dor de uma descoberta destas.
Assisto horrorizada quando acções de que sou responsável lhes desenham tristeza
nas testas pequeninas. Atormenta-me o pavor de lhes destruir o futuro, de lhes
dar cabo da auto-estima, de os estilhaçar impedindo-os de construírem relações
saudáveis. A responsabilidade de criar três crianças é avassaladora. Fazer o
quê com elas se desconheço o que fazer comigo. Vêem-me alta, santa, como se
soubesse imenso e é falso. As memórias que construímos sobre a convivência primeira
são as mais destrutivas. Quero fugir. Acordo com esta ideia. Domestico-a. Imperdoável
a mãe que abandona. Cinco dias em trezentos e sessenta e cinco em que me finjo
só. Ninguém à espera para eu cuidar ou para me idealizar. Ninguém aguarda um
pingo de chuva num dilúvio, nem se angustia com um mosquito contra a velocidade
do pára-brisas. Sou vento, graças a Deus. Ninguém dá por mim . Invisível. Vou às
Correntes. O resto do ano é vosso. Ajo mecânica. Abarco atabalhoada os papéis
destinados. Robot da vida moderna. Encurralada entre a família, os pensamentos,
acções e omissões, clandestinidades e a cura. Nunca me diagnosticaram asma,
ansiedade ou outra desordem quer fisiológica, quer mental e, no entanto, uma
falta de ar persistente acompanhada de um hálito fétido. Ando com a bomba. É-me
tão característica como pesar sessenta quilos, medir um metro e setenta e
quatro, ter cortado o cabelo curto na adolescência e manter o corte inalterado
por décadas, a franja, um sinal que detesto no queixo e uma apetência estúpida
para me apaixonar. Isto estará explicado nos anais de psicologia. O meu
paizinho, isto, a minha mãezinha, aquilo. Acredito que esteja e não quero
saber. O presente é responsabilidade do próprio. As mudanças operadas foram
subtis. No início, era feliz ou convicta de o ser. Passados alguns anos, algo
insatisfeita, atribuí-o a indisposição passageira. Comecei a acumular o
descontentamento nos ossos capaz de me afirmar bem. Protegia a imagem. Era o momento
de pretender, somente, convencê-los. Miserável já não disfarçava fora nem
dentro. Na dor declarada descuido o valor atribuído ao que pensam das minhas atitudes.
A infelicidade é o esqueleto que sustém. Dificílimo sair disto. Nego os
argumentos que impulsionem a mínima mudança. O logro começou anos antes de o
poder admitir, quanto mais verbalizar. Gostaria de experimentar vidas diversas
da escolhida. Uma é insuficiente. Daí que a fachada incompleta na Rocha Peixoto
me tenha sugerido um conto sobre o portal que nos permitiria ensaiar a vida.
Anotei os tópicos principais do enredo. Pela fresca, com os primeiros indícios
da manhã, trabalho-o. Perseguir inúmeros trilhos sem prejudicar. Experimentação
e regresso. Experimentação e regresso. Experimentação e regresso. A trama foi
mais bem escrita por um grande escritor séculos antes de mim, todavia,
ignorante relativamente ao que quero. Assim, causas próprias as mesmas mãos no
teclado. De facto, ninguém me forçou. Tomei decisões. Precipitei-as, inclusive.
Crente de que o amor é companhia sem estar certa, sequer, da sua existência.
Este, a estar desacompanhada, é o quê? Deve ser o egoísmo. Talvez tenha nascido
defeituosa. Imaginei a maternidade altruísta, feita de renúncia alegre. Mulheres
com este instinto exacerbado para serem outras, além de cuidadoras de lares e de
filhos, falham nas competências, no preenchimento do teste psicotécnico tácito
dos que estabelecem como é ser-se boa mãe. Não me chateiem, não me façam pedidos
a cada três, vírgula, nove segundos e para ontem, deixem-me na casa de banho
sozinha, são três minutos, pouco mais. Cinco não vos fazendo mossa. Parem de me
chamar em simultâneo, de gritarem matérias importantíssimas as quais devo
considerar de igual modo, no exacto momento em que as proferem, parem de
competir pela atenção, pelo afecto, como se o meu bem-querer fosse uma coisa
pequenina que partilhada perdesse significado. Não respondo a perguntas que me
obriguem a distinguir quem amo. Grito. Grito mais do que queria e odeio
gritar. É contra a minha natureza impor-me. Ver-me sozinha longe de reclamações
é o que quero com ardor. Serei mãe. Saturada das birras, berros, ralhetes, da
negativa, de lutar com a resistência deles, das ladainhas insatisfeitas, de me ver
malvada a cada instante, em erro, a desiludir, a magoar, a exceder-me nociva.
Estou farta. Exausta. Em extinção. Agiganto é certo, porém, não diminuo o que
me apetece. Desaparecer. Então, neste mês redentor, guardo numa pequena mala três
camisolas quentes, calças de ganga, meias e cuecas, botas para a chuva, livros,
revistas, o meu caderno azul, o estojo de grafites, o computador portátil e
meto-me num comboio para o Norte. As férias tiradas da biografia começam pelas
quatro e meia da manhã. Desço as escadas silenciosas do Lote 11. Aguarda-me o Sérgio,
amigo da família, em quem confio para me levar em segurança de madrugada. Vamos
numa conversa boa até Santa Apolónia. Na estação gelada verifico a linha de
onde parte o alfa-pendular das seis. Sigo para a plataforma e instalo-me no
assento escolhido com quinze dias de antecedência, para usufruto da promoção.
Entretenho-me a observar os passageiros ao redor. Desenho a maioria, escrevo
poucos. Conjecturo um bocado sobre as suas vidas e, quando me aborreço,
dedico-me à leitura. É raro adormecer. No hotel pelas dez estico-me na cama indolente.
Aprecio a imobilidade, vejo o que me apetece na televisão, leio, faço o que me
dá na bolha. Vingo-me. Serei propriedade de quem. Pergunto porque nas falanges escuto
culpa. Levanta-te. Põe-te em sentido,
Mãe. Os que te avaliam têm tabelas com os parâmetros que incumpres, em rigor,
todos os dias, Mãe. Comporta-te, Mãe. Aspirações-extra a que propósito, Mãe. Há
lá melhor. O que fazes estendida, Mãe. É árduo, sim, mas o sorriso deles
compensa. É, Mãe? Os sorrisos deles são a expressão da sua generosidade
perante a vida, reconfortantes, sim, mas não são tudo e, sobretudo, não são
meus. São deles. Sinto falta de mim, do ar limpo e a médica de família nega-mo.
Serei doida. Por que não me bastam. Por que não me rendo. Nado no mesmo sítio
há tanto tempo. Afogamento previsto para uma noite de desânimo pelas 23h09.
Como é que ela se afogou com água pela cintura. «Não pediram para vir.» A avó.
«Tens de brincar com eles.» O avô. «Descontrai.» O marido. «Desorientada.» Eu. Avisto
o Grande Hotel no seu tom vívido. Renasço. É o princípio do desprendimento.
Corro. Possibilidades imensas. Desconforto nenhum.
Paz.
Andreia Azevedo Moreira
De 3 de Novembro a 28 de Dezembro de 2015
OBRIGADA POR ME LERES.
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