terça-feira, 10 de maio de 2016

XVII – Ala-arriba!

Santo André resgatou-me à fundura. Acordo a flutuar. Quanto durou o afogamento. Ao redor centenas de páginas nadam a profundidades diversas. Amparam-me. São as que criei. Distingui-las-ia em qualquer meio. Letras de todas as cores vão surgindo como fotografias reveladas em câmara escura. O papel indestrutível. As histórias, os lugares, os compassos, as personagens vieram em meu socorro. Puxam-me, pelas axilas, para fora. Pousam-me com cuidado numa pana, embora seja certo darem-me como acabada com a visão turva e as cordas vocais enfeitiçadas, som nenhum. Ouvem-se diversas pronúncias do português em conversas encantatórias. Num repente de convulsão expulso água dos pulmões. Posso assegurar ter recebido um beijo de vida, instantes antes. A reduzida área, entre bancos, está atulhada de redes com livros, papéis, esferográficas, blocos, folhas soltas, dois computadores, papiros, penas, tinteiros, mata-borrões, uma Olympia, maços de tabaco de marcas desconhecidas, as caixas coloridas de algumas das colecções doentias. Tiveram de arranjar espaço para me acomodar além da estranha pescaria, entre os pés dos tripulantes da lancha sobrelotada. À medida que os olhos se habituam à luz vou descortinando os rostos que me rodeiam. Mortos, todavia, vivos. Integramos frota de embarcações diferentes em tamanho e feitio. Alguém confirma «Navegamos à bolina». Os remos ainda estão recolhidos. Ao bombordo, incontáveis velas-trapézio rogam a Deus inclinadas na sua fé desmedida. Lotação esgotada, igualmente. Levanto-me e reconheço mais gente que venero. A boreste, barcos a perder de vista no limite da capacidade. A ondulação faz-me temer o desequilíbrio e o naufrágio. Perdi o impulso de me matar. Recupero, aos poucos, o fôlego de que desistira. Quando me constatam viva, todavia, morta, congratulam-se. «Bem-vinda a bordo. Permaneces se remares.» Lêem-se histórias dos séculos antepassados. Relembro algumas, surpreendem-me as desconhecidas. Recrimino-me por estar tão atrasada nas leituras essenciais. Sentámo-nos de frente uns para os outros. Ti’Maio concentrado ouve-nos. Garante que navegamos seguros nesta lancha. Indelével.

Ao longe, luz. A Lapa reacendeu-se para nós. Será difícil. O farol avisa-nos das condições adversas à entrada da barra. Tomo o meu posto como se soubesse exactamente o que fazer na navegação. Foco-me nas pinturas mágicas dos cascos que a vista alcança. Creio nas suas bênçãos para nos fazer aportar. As conhecenças serenam-me. Serei capaz. Por companhia os tripulantes mais competentes da história da humanidade e um patrão bravo ao leme. Por debaixo de nós as vagas aumentam súbitas e assustadoras. Ele fala comigo depois deste período em que o desconsiderei.

«Fica.»

«Indo onde tenho de ir.»

«Isso significa o quê?»

«Preciso de chegar para reconhecer a rota. O quanto remei.»

«Chegar?»

«Sabes o que quero dizer. Chegar.»

«Persigo-te como um cão raivoso.»

«Perdi o receio.»

«Decides afrontar-me.»

«Sem dúvida.»

«Arriscas.»

«Sim.»

«Antes de ti muitos falharam ou desistiram.»

«Já mo disseste. Vou.»


Encapela-se. As lanchas bailam o descontrolo imposto pela sua indignação, ameaçam tombar, render-se à água invasora. Desceu a noite antes da hora e uma neblina espessa engole-nos, vinda do interior. Deixamos de ver os pontos que nos asseguravam estarmos perto de poder deixá-lo. Só a intuição pode valer-nos. O vento é afinal seu cúmplice na refrega. Os patrões gritam-nos incitamentos, calma e as orientações possíveis. «Reduzir o pano nos quatro rizes.» Dobramo-nos combativos sobre os remos aos quais nos amarrámos. Contamos com a força maior que levamos dentro. Impassíveis perante o sangue que preenche as linhas das palmas guerreando. Tememos morrer pelo esquecimento e que tenha sido vão o nosso esforço para permanecer, acerca de nós, uma evidência. Somos iguais, temos medo. «P’ra barlavento.» Que a velocidade boieira nos guarde e leve rápido a bom porto. Aguardamos vigilantes, antes da barra, por todos os barcos ainda em perigo. A solidariedade é redentora. A compaixão salva. Apesar da desorientação que a tempestade nos inflige, remamos em absoluta sincronia. Sabemo-lo: A noite estrelada é bela mas a estrela solitária não enleva. Dois camaradas ajudam José Rodrigues com o governo da lancha. «Agôra.» Entramos na barra. Na praia uma multidão organiza-se lesta, aguarda a oportunidade de se atirar ao mar e caçar os estais para varar os barcos para terra. Acolher-nos-ão após a tormenta na enseada.

Sophia, Florbela, Luísa, Irene, Sara, Fiama, Maria, Gabriela, Ana, Madalena, Cecília, Filipa, Ângela, Teresa, Violante, Helena, Mariana, Judith, Judite, Branca, Luiza, Natália, Leonor, Jacinta, Ilse, Catarina, Mécia, Guiomar, Joana, Amália, Alice, Dóris, Rosa, Carlota, Matilde, Francisca, Bernarda, Inácia, Brígida, Antónia, Constança, Teodosia, Aurora, Tomásia, Brites, Isabel, Beatriz, Umbelina, Margarida, Adriana, Agostinha, Bárbara, Eugénia, Ivo, Caetano, António, Raúl, João, Flávio, Francisco, David, Jorge, Dinis, Carlos, Vitorino, Manuel, Miguel, Vergílio, Júlio, Fernando, Diogo, Duarte, Augusto, Camilo, Campos, Adolfo, Mário, Armando, Abel, José, Alfredo, Gil, Luís, Luiz, Leonardo, George, Emídio, Albino, Fernão, Agostinho, Pedro, Guilherme, Nicolau, Alexandre, Joaquim, Henrique, Jacinto, Alberto, Jaime, Álvaro, Herberto, Eduardo, Romeu, Ruy, Eugénio.

Reuniram-se infindos na salvação.

Saltamos para terra firme. Os nossos ombros aliviam o peso do barco agitando-o pelos lados, enquanto a irmandade puxa a lancha com alento conciliado. As pernas são tesouras vencendo a areia além do próprio eixo. Alguns correm da ré para a proa com os paus de sebo recém-libertados para os recolocarem por debaixo do casco, mais acima. As expressões denotam o contentamento de vencerem as dificuldades. O barco move-se lento, metro a metro, conquistado ao mar, galgando a duna sobre dorsos obstinados. Somos voz em uníssono. «Força, para cima! Força, para cima!»

«Força, para cima!»


Imagem daqui.


Andreia Azevedo Moreira
03 de Novembro a 28 de Dezembro de 2015



OBRIGADA POR ME LERES.


Sem comentários:

Enviar um comentário

OBRIGADA POR ME LERES.