terça-feira, 3 de maio de 2016

Dezasseis




Abençoado o que determinou que se rasgasse a Mouzinho de Albuquerque. Quilómetro percorrido, sem desvios, em poucos minutos. Derivasse o percurso e a cidade devolver-me-ia diligente ao nosso amor primordial, num abraço com mais de oitenta quilómetros quadrados. Vasco da Gama. Santos Graça. Serpa Pinto. Elias Garcia. Descobrimentos. Esta pela qual me desloco apressada e enferma. Paro solene em cada uma das dezanove placas de metal anunciando a avenida a azul. Nando artífice de outras artes faz de cada criação irrepetível. As letras são as mesmas, a matéria-prima variação subtil. Apesar do tom predominante, o labor do artista originou peças incomparáveis como o são memórias e afectos. Como irmãs o mesmo código, mundos diversos. As siglas poveiras segredam as leituras dos valorosos de antigamente. Caminho fazendo jus à alcunha com que me apodaram. Julgam-me tonta, incapaz de os entender se me criticam próximos. Brinco perdida de gozo. A troça cessou de fazer mossa e brinco com as palavras alto, em rima ou em prosa, sem necessidade de lhes provar ser capaz do melhor. Importa-me tão-só o rumo.

Passeio na cidade fantástica com os olhos fora do chão. Cálice aberto, lanchinha, quartos, pé-de-galinha, estrela, São Selimão. É coice, também sarilho, colhorda, cruz, pique e arpão. Escrita primeira de marcar bens e presenças. Admiro-a bendizendo a hora em que aprendi os signos da língua-mãe. Inscritos na cabeça, penso-os com o coração.

Na Póvoa jamais acontecerá perder-me, mesmo quando rimo. Todas as ruas conduzem ao mar. Atravessada a Avenida dos Banhos, estou à frente do edifício cor-de-rosa, com o nome que teria escolhido para a filha que não quis gerar: Diana. Também teria gostado de Inês ou de Sofia. De que serve a especulação, nunca aspirei à maternidade. Contorno deferente esta morada de cultura. Os livros escritos a transparente estão alinhados lá dentro sem testemunhas. Escondi-os, há muito, perto de Marguerite. Estou certa de que alguém atento os há-de ler. Por ora, enterro bem os pés na areia. Preenche cada espaço entre as meias, os pés e os sapatos. Percorro o areal munida das canetas multicolores, da resma de papel e das armas próprias da inteligência. Chegou o último mergulho. Vou com a roupa que me serve. Coloco um pé dentro dele. Sinto-o gelado no couro dos sapatos. A areia pesa mais. Submerjo o pé direito. Caminho por ele adentro. A temperatura sente-se como espadas. Encharca as meias, a saia, a pele arrepiada e dorida, os cabelos colam-se às costas para, mais à frente, flutuarem como algas. As articulações bloqueiam. É o 28 de Fevereiro de um ano desconsolo. Ele enrola-me, respiro sal, arde a garganta. Os pensamentos misturam-se. Os ouvidos comprimem-se antes do pânico da extinção. Estou certa de poder emergir com ideias de revolução e liberdades urgentes. Livre. Enfim, livre. Afinal, completa. As ideias vêm de todas as partes do corpo. Uma de um tornozelo. Aquela, dos joelhos. A mais adorada do céu-da-boca. O arrojo depositado na língua solta-se e é visível como se tratasse das bolhas de oxigénio, por ora dispensável. Abro os olhos no verde turbulento. Ao meu redor o meio desenha-se como bolas de sabão das que duravam menos do que a alegria de menina ao soprá-las. Ouço o cavernoso «Pára.» Desesperado com o próprio domínio, tenta devolver-me à beira. Tusso alguma água engolida. Reergo-me. Dou três passos com determinação redobrada. Esbracejo ânimo e recito narrativas, entrecortada pelos trovões. Vês. Lembro-me. Recordações perduram apesar dos recalcamentos. Busco nele a cura. Chora com o dilúvio por me saber irreparável. Roga «Desiste.» Recuso-o, não obstante o poder imenso que exerce sobre mim. O vento agita-o. Desconheço se o conforta ou atormenta. Que serventia é a sua. Rumor incansável, potência motriz, único ruído antes de me afundar. A corrente transporta-me a velocidade constante onde só há quietude. O xaile ocre dança à tona.

Silêncio.

Andreia Azevedo Moreira
3 de Novembro a 28 de Dezembro de 2015

OBRIGADA POR ME LERES.












Sem comentários:

Enviar um comentário

OBRIGADA POR ME LERES.