Abençoado o que determinou que se rasgasse a Mouzinho de Albuquerque. Quilómetro percorrido, sem desvios, em poucos minutos. Derivasse o percurso e a cidade devolver-me-ia diligente ao nosso amor primordial, num abraço com mais de oitenta quilómetros quadrados. Vasco da Gama. Santos Graça. Serpa Pinto. Elias Garcia. Descobrimentos. Esta pela qual me desloco apressada e enferma. Paro solene em cada uma das dezanove placas de metal anunciando a avenida a azul. Nando artífice de outras artes faz de cada criação irrepetível. As letras são as mesmas, a matéria-prima variação subtil. Apesar do tom predominante, o labor do artista originou peças incomparáveis como o são memórias e afectos. Como irmãs o mesmo código, mundos diversos. As siglas poveiras segredam as leituras dos valorosos de antigamente. Caminho fazendo jus à alcunha com que me apodaram. Julgam-me tonta, incapaz de os entender se me criticam próximos. Brinco perdida de gozo. A troça cessou de fazer mossa e brinco com as palavras alto, em rima ou em prosa, sem necessidade de lhes provar ser capaz do melhor. Importa-me tão-só o rumo.
Passeio na cidade fantástica
com os olhos fora do chão. Cálice aberto, lanchinha, quartos, pé-de-galinha, estrela,
São Selimão. É coice, também sarilho, colhorda, cruz, pique e arpão. Escrita
primeira de marcar bens e presenças. Admiro-a bendizendo a hora em que aprendi os
signos da língua-mãe. Inscritos na cabeça, penso-os com o coração.
Na Póvoa jamais acontecerá perder-me, mesmo quando rimo.
Todas as ruas conduzem ao mar. Atravessada a Avenida dos Banhos, estou à frente
do edifício cor-de-rosa, com o nome que teria escolhido para a filha que não
quis gerar: Diana. Também teria gostado de Inês ou de Sofia. De que serve a
especulação, nunca aspirei à maternidade. Contorno deferente esta morada de cultura.
Os livros escritos a transparente estão alinhados lá dentro sem testemunhas.
Escondi-os, há muito, perto de Marguerite.
Estou certa de que alguém atento os há-de ler. Por ora, enterro bem os pés na
areia. Preenche cada espaço entre as meias, os pés e os sapatos. Percorro o
areal munida das canetas multicolores, da resma de papel e das armas próprias
da inteligência. Chegou o último mergulho. Vou com a roupa que me serve. Coloco
um pé dentro dele. Sinto-o gelado no couro dos sapatos. A areia pesa mais. Submerjo
o pé direito. Caminho por ele adentro. A temperatura sente-se como espadas.
Encharca as meias, a saia, a pele arrepiada e dorida, os cabelos colam-se às
costas para, mais à frente, flutuarem como algas. As articulações bloqueiam. É o
28 de Fevereiro de um ano desconsolo. Ele enrola-me, respiro sal, arde a
garganta. Os pensamentos misturam-se. Os ouvidos comprimem-se antes do pânico da
extinção. Estou certa de poder emergir com ideias de revolução e liberdades
urgentes. Livre. Enfim, livre. Afinal, completa. As ideias vêm de todas as
partes do corpo. Uma de um tornozelo. Aquela, dos joelhos. A mais adorada do
céu-da-boca. O arrojo depositado na língua solta-se e é visível como se
tratasse das bolhas de oxigénio, por ora dispensável. Abro os olhos no verde
turbulento. Ao meu redor o meio desenha-se como bolas de sabão das que duravam
menos do que a alegria de menina ao soprá-las. Ouço o cavernoso «Pára.»
Desesperado com o próprio domínio, tenta devolver-me à beira. Tusso alguma água
engolida. Reergo-me. Dou três passos com determinação redobrada. Esbracejo
ânimo e recito narrativas, entrecortada pelos trovões. Vês. Lembro-me. Recordações
perduram apesar dos recalcamentos. Busco nele a cura. Chora com o dilúvio por
me saber irreparável. Roga «Desiste.» Recuso-o, não obstante o poder imenso que
exerce sobre mim. O vento agita-o. Desconheço se o conforta ou atormenta. Que serventia
é a sua. Rumor incansável, potência motriz, único ruído antes de me afundar. A
corrente transporta-me a velocidade constante onde só há quietude. O xaile ocre
dança à tona.
Silêncio.
Andreia Azevedo Moreira
3 de Novembro a 28 de Dezembro de 2015
OBRIGADA POR ME LERES.
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