domingo, 23 de março de 2025

Robbie Williams

(Agarrem-se meus queridos, vem aí verborreia.) 


Vi mais um documentário daqueles que me prova o que há muito aprendi. Quando fomos quebrados, na infância, levamos a vida inteira a reconstruir-nos para não mais nos encararmos como a uma coisa partida. Reparem, no documentário que vi na netflix absolutamente nada é dito das origens de Robbie e ao mesmo tempo é-nos dito, é-me (vá, que mania de me juntar ao plural, chiça!) dito tudo: vazio.  

Boa parte do tempo, enquanto adolescente e jovem adulta passei-o a procurar fora o que não tive, por direito, ao nascer. A iludir-me, a encher-me de actividades e (co)dependências (a internet é uma) que me viessem provar que eu valia alguma coisa. E isso estendeu-se às relações. A pessoa tenta validar-se através das pessoas que conhece, das que admira, das que aspira a ser, das que (crê) deseja(r), para alcançar um qualquer pódio interno que aplaque a dor de não ter sido amada. Isto deve ser o b-a-bá da psicanálise e muito claro para quem estuda os assuntos em questão. Já para quem os vive, demora décadas a entender, assimilar, a avançar e a retroceder em processos de aceitação, auto-sabotagem e até mesmo autodestrutivos. 

Se fossem o bastante: a fama, o sucesso, milhões de admiradores, dinheiro, não teria morrido tragicamente uma Norma Jean, até hoje mundialmente reconhecida, Marilyn Monroe, ícone de mulher mais desejável de todos os tempos, na mais absurda solidão, na mais gélida infelicidade.

Se fossem o bastante, o documentário a que assisti não existiria. É de uma generosidade absoluta. Seja o que for que levou o Robbie Williams a querer fazê-lo, o resultado é puro altruísmo. A exposição, a nudez física e psicológica, o despojamento com que vai assistindo ao seu inferno interior, relatando-o, sem máscaras. Assumindo a sua verdade, as suas vergonhas, as sombras, as trevas. Enfrentando o julgamento alheio a que afinal esteve sujeito a vida toda, desde os 16 anos, quando se tornou famoso e aclamado pelo ingresso na banda Take That. Ele não teve tempo de lamber as feridas. Ele foi atirado, ainda menino, aos carnívoros e em carne viva. Sobreviveu. Podia ter morrido como tantos outros com apenas 27 anos. Podia ter sucumbido à noite mais escura da alma (preciso de ler mais sobre esta maravilhosa designação).

Sobreviveu. Tem mais de cinquenta anos e, não obstante, a maturidade, o crescimento interior, a serenidade que alcançou ao lado do amor que aprendeu a construir, a manter e a reconstruir, incansável, ao lado da mulher que o aceitou com as suas sombras e com quem teve filhos, a quem dará o que não deve ter tido, dizia eu, não obstante tudo isto, as unhas roídas, as mãos premindo-se uma contra a outra, fazendo força, sinal claro do desconforto que é pele e contra o qual se tem de lutar enquanto cá andarmos.

E há dias em que o cansaço ganha e não apetece sair da cama. Principalmente, quando se decide que a partir de certa altura se quer viver a seco. Isto é, sem adicção que nos torne dormentes para a dor, mas também incapazes de sentir todas as emoções. 

São quase cinquenta anos em obras, com momentos de alívio, imensas alegrias, conquistas, gargalhadas, amizades sólidas, um amor imenso à nossa família, onde, finalmente, sinto ter uma casa, um lugar onde descansar a cabeça, sem chantagens emocionais, manipulações ou preços a pagar, mas ainda assim, quase cinco décadas em reconstrução. Traz algum cansaço, senhora. Traz algum desânimo, senhor. Vontade de dormir por tempo indeterminado de ora em vez, sim senhores.

Por isso, ao assistir a este documentário senti a dor do Robbie, pus-me nos sapatos dele e compreendi quão pesadas são as expectativas das/dos fãs (como já fui) sobre os ombros destes seres humanos que têm depostos em si milhões de olhos e carências alheias encapotadas.

Isto, foi-me claramente demonstrado em dois momentos diferentes: 

um, num concerto dos Pearl Jam em que uma fã da música da banda comentava que quem ia para os concertos com cartazes a chamar-lhes a atenção, queria apenas chamar a atenção sobre si mesmo. 

Enfiei a carapuça.

Outro, num livro de um professor de escrita criativa, o Nuno Costa Santos (no seu Céu nublado com boas abertas) que dizia algo assim (a ideia que me atingiu foi esta, a frase poderá estar escrita de maneira totalmente diferente): uma pessoa desamada apaixona-se, até, por quem lhe dá a passagem numa porta. 

Enfiei a carapuça.

Ao contrário do que diz o Elon Musk, personagem tenebrosa dos nossos dias, a quem é muito difícil não odiar, em conjunto com o Trump e os Talibãs (só para dar três exemplos de seres aparentemente inumanos, a quem me esforço muitíssimo para não odiar), acredito que a empatia é a nossa força, enquanto humanidade. O que permitiria acabar com as guerras, não fossem o dinheiro, o poder e a ganância por território, doenças incuráveis.

Não tenho jeito para a socialização, para conversar com as pessoas, para saber delas em directo, então, o modo de me aproximar é ouvi-las*. Adoro podcasts, adoro documentários, adoro o alta definição. Adoro tentar compreender os pares através dos seus pontos de vista e com eles conhecer-me melhor. 

Ganhei um respeito enorme pelo Robbie, pela sua música, pelas canções que lhe vêm de um lugar verdadeiro, ao contrário dos execráveis que escrevem textos odiosos em pasquins para arrasarem/demolirem (agora escolham!) quem lhes apeteça sem, lá está, o mínimo de empatia.

Destruir é fácil. 

Fazer chorar é fácil.

Basta ser negligente, descuidado ou insensível, para dar exemplos.

Construir e fazer rir são escolhas.

As mais bonitas que podemos fazer, durante o tempo que nos for concedido para andarmos cá.

Ouvi-lo-ei, de ora em diante, com um entendimento maior e com redobrado prazer. São canções orelhudas, comerciais, sim, e também vêm de um coração que escolhe oferecer o que tem para dar. 

Em suma, filhos adorados da mãe: o que nos faltou nunca virá de fora, de uma actividade, do sucesso, de dinheiro, de outra pessoa, muito menos da atenção que recaia sobre nós. Isso são acrescentos ao que temos de encontrar dentro. A investigação sobre quem viemos ser não termina e a primeira metade da vida, com sorte, é a despirmos a roupa que nos impingiram e não nos deixa mexer. 

Os afagos dos outros serão sempre mais-valias, nunca quem somos ou podemos ser, tão-pouco o que já trazemos interiormente e ao que seria bem-bom darmos todo o espaço, de que formos capazes, para que possa desabrochar**. 




*E isto já vem desde menina. Certa vez, no comboio, vinha a ouvir duas velhas, atentamente. De tal modo atentamente que mamãe disse: Fecha a boca, Andreia!


**Confesso, tenho sido e sou uma mãe pouco didáctica, além de brejeira e de facto acrescentei esta palavra porque, amiúde, me foge a mente para a malandrice.

           



Sem comentários:

Enviar um comentário

Obrigada, pelo tempo.