Uma frase que ninguém ousa dizer.
A arte diz o impossível. O único teatro que admito, hoje, na minha vida, é o dos palcos. Aquele a que as pessoas se agrilhoam, iludidos em distracções várias, para não se confrontarem com a dor, não me interessa. Fujo o mais que posso e consigo daqueles que "nunca levaram pancada".
Arte é respiração, o indizível. O Teatro é a própria vida a questionar, a escavar as fundações em que nos firmámos, tantas vezes (a maior parte?) de modo frágil.
Fui ver esta peça. A Tati Pasquali conduz-nos com crueza pelos meandros da escravidão feminina (a auto-imposta, a infligida, a tácita):
Submissão a papéis impostos de variadas, subtis e insidiosas maneiras.
Renúncia a si mesma.
Co-dependência.
Trabalho doméstico não remunerado.
Quotidianos esgotantes que extinguem qualquer vontade de ser para além da domesticidade.
Abdicar de uma carreira em prol do sucesso da outra parte.
Julgamento dos pares muito acintoso sobre uma mãe que abandona e muito condescendente sobre um pai que faz o mesmo.
Desapropriação do corpo.
Violência obstétrica.
Menosprezo.
Apagamento de si mesma para ser gostada, para ser agradável, para servir.
Os momentos cómicos da peça são os mais trágicos. Expõem as desigualdades mais fundas de um modo que, se não rir às gargalhadas me desintegro.
O texto não permite que desviemos o olhar do que A I N D A é.
Feminismo é preciso? Sim. Infelizmente: S I M.
Inspirado na «Mulher desiludida» de Simone de Beauvoir, escrito nos anos 60: absurdamente actual.
Triste, não?
Que as mentalidades demorem séculos a evoluir e com tantos retrocessos pelo meio.
Adorei a rescrita que a Tati Pasquali fez do que leu.
Apeteceu-me bater-lhe nas versões da personagem que não sabem ser para lá de Marcelo.
Angustiou-me aquele não saber existir arredadas dos olhares dos homens em quem acreditaram: estariam de corpo presente até aos dias do fim.
Adorei a encenação do texto. Os diferentes momentos. As roupagens que se vestem e que se despem em palco como na vida.
A banda sonora.
O cenário.
Adorei que represente as mulheres silenciadas.
Linhagens de mulheres que morreram longe de si mesmas.
Linhagens de mulheres julgadas e condenadas por ousarem procurar-se.
Linhagens de mulheres a quem mentiram repetindo o mantra venenoso de que as mulheres são traiçoeiras umas para as outras.
Não somos.
Demos as mãos.
Sejamos mulheres inteiras, com coragem. Caminhemos ao nosso encontro «enquanto houver estrada para andar».
Juntas.
Sororidade.
Sou fã da Companhia de Actores, do teatro Amélia Rey Colaço e da Cláudia Semedo.
Obrigada, por tanto bom teatro ao qual já assisti nessas paredes-casa.

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